ana haterlyO PEN Clube Português lamenta profundamente o desaparecimento de uma das suas sócias e co-fundadoras, Ana Hatherly, figura maior da cultura portuguesa contemporânea, nomeadamente a partir de 1959. A autora pertenceu aos corpos gerentes do PEN até 2009, tendo sido também Presidente do Committee for Translation and Linguistic Rights of International PEN. Nascida no Porto, no ano de 1929, Com um percurso versátil, a sua obra atravessa o cinema, as artes plásticas, a poesia e a prosa, cruzando e estabelecendo passagens entre as diversas expressões artísticas.

Licenciada em Filologia Germânica e doutorada em Estudos Hispânicos, a autora teve, ainda, formação em cinema (pela International London Film School) e música e tornou-se Professora Catedrática na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde foi co-fundadora do Instituto de Estudos Portugueses e dirigiu duas revistas: Claro-Escuro e Incidências. Antes da chegada à Universidade Nova de Lisboa, foi professora de Cinema no Conservatório Nacional e na escola AR.CO, em Lisboa. A sua obra cinematográfica encontra-se no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e no Arquivo da Cinemateca Portuguesa. Destaque-se ainda Revolução, Lisboa, de 1975, que foi exibido por altura dos 40 anos do 25 de Abril, no Centre Pompidou, em Paris e O que é a ciência? I e II, de 1976, e, de 1977, Rotura, Lisboa, Galeria Quadrum.

Ana Hatherly iniciou a carreira literária em 1958, tendo-se estreado com a recolha de poesia Um ritmo perdido. Em 1960 dá início à sua carreira de artista plástica, reconhecida nacional e internacionalmente. Em qualquer dos domínios literários, da poesia à prosa e ao ensaio, a sua obra é extensa, revelando uma personalidade inquieta e sempre em busca de novas formas e caminhos. O seu nome aparece, sobretudo, ligado à vanguarda da poesia e à poesia experimental (tendo sido autora do primeiro poema concreto em Portugal), durante as décadas de 60 e de 70. Ana Hatherly explorou as mais diversas potencialidades da mancha da escrita e da caligrafia, transformando a sua obra em poesia visual e destacando-se no panorama da vanguarda das artes e da poesia portuguesas. Segundo a própria, “a literatura de vanguarda, que surge na sociedade burguesa, é antiburguesa” e a sua atitude é claramente política, nesse sentido, como uma ruptura face aos valores do passado. Mais tade, a sua pesquisa com as formas artísticas do Barroco permitiu-lhe explorar as infinitas possibilidades de trabalho com a escrita e a poesia, associando-a às artes plásticas e impulsionando caminhos surpreendentes na poesia e na arte portuguesas. Por outro lado, como se pode ler no arquivo digital da PO. EX, uma revista em que participaram António Aragão, Herberto Helder, Ernesto Melo e Castro e a própria Ana Hatherly (donde resultou uma exposição e um livro), a obra da autora é caracterizada por uma intensa auto-reflexividade é visível em ciclos de permutações paródicas, no desenvolvimento de formas como o poema-ensaio e a micro-narrativa. Tisanas (obra que é apresentada como work in progress e a última edição/reimpressão é de 2006, é bem a expressão desse trabalho formal, que a autora procurou teorizar. Todavia, a obra de Ana Hatherly, ainda que vivamente marcada pelo experimentalismo, não pode ser reduzida e a própria sofria com alguma incompreensão perante esse facto. O seu trabalho, ainda que sempre marcado pelo jogo conceptual que impulsionou as suas descobertas, desenvolve-se a partir de outros núcleos, que procurou desenvolver em Tisanas, num trabalho de intertextualidade que era feito a partir de autores como Bernardim Ribeiro, Camões, Mallarmé e James Joyce. Não podemos esquecer, ainda a presença de Eros, em Eros Frenético. Não podemos esquecer, ainda, essa obra-prima que é a sua novela O Mestre, escrita em Paris e que tem por cenário o Portugal do Estado Novo.

As obras de Ana Hatherly encontram-se integradas nos principais Museus de Arte Contemporânea portugueses e em colecções privadas nacionais e estrangeiras, nos seguintes Museus e colecções: em Lisboa, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (CAM); na colecção Caixa Geral de Depósitos; na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD); no Museu do Chiado; no Museu da Cidade; na colecção PORTUGAL TELECOM, e na colecção Berardo. No Porto, a sua obra plástica está ainda representada no Museu de Serralves; no Museu Soares dos Reis; na Fundação Abel Lacerda, Museu do Caramulo; na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão; no Museu do Funchal, na Madeira, no Archiv Sohm, em Frankfurt, e na Marvin Sackner Collection, em Miami.

Com o livro de ensaio O Ladrão Cristalino: aspectos do Imaginário Barroco, em 1998, conquista o Premio de Ensaio da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) e, com a sua obra de poesia Rilkeana, é galardoada com o Prémio de Poesia do PEN Clube Português. Ainda em 2003 lhe é atribuído o Prémio de Consagração da APCL (Associação de Críticos Literários Portugueses), pela sua obra O Pavão Negro. 

Também a Sociedade Brasileira de Língua e Literatura a distinguiu, no ano de 1978, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura. Em 2003, foi distinguida com os Prémios de Poesia Evelyne Encelot, em França, e Hannibal Lucic, na Croácia. Em 2009 foi distinguida como Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. O espólio da autora está à guarda da Biblioteca Nacional, no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea e parte da biblioteca pessoal está na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

De acordo com Ana Marques Gastão, estão no prelo a tradução para língua francesa da novela O Mestre, assinada por Catherine Dumas, um volume de homenagem publicado por iniciativa da Universidade Federal Fluminense no Brasil (UFF, Niterói) e outro de ensaios, pela Theya, que completa a trilogia sobre o Barroco, intitulada Esperança e Desejo – Aspectos do Pensamento Utópico Barroco. A Mão Inteligente, um filme de Luís Alves de Matos, Lisboa, debruça-se sobre a sua obra, dizendo respeito essencialmente à sua obra artística.

Quem se lembra de Ana Hatherly, relembra a sua postura combativa e coerente, pautada pelo seu amor aos valores humanistas, que defendeu corajosamente. Relembra também o seu olhar claro e inteligente, a sua curiosidade e inquietude férteis. Até sempre, Ana Hatherly!