Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996)

(O texto da presente Declaração foi inicialmente produzido no âmbito do PEN Internacional e depois com o apoio de outras organizações, tendo contado com o patrocínio da UNESCO. A tradução é de Wanda Ramos, a cargo do PEN Clube Português. A edição [original, em papel] é da Comissão Nacional da UNESCO, por sugestão do PEN Clube Português.)

INTRODUÇÃO

As instituições e organizações não governamentais signatárias da presente Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, reunidas em Barcelona de 6 a 9 de Junho de 1996,

Considerando que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que afirma no seu preâmbulo “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres”; e que no seu artigo 2.º estabelece que “todos têm todos os direitos e todas as liberdades”, sem distinção “de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou qualquer outra condição”;

Considerando o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966 (artigo 27.°), e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, da mesma data, que nos respectivos preâmbulos declaram que o ser humano não pode ser livre se não forem criadas as condições que lhe permitam fruir tanto dos seus direi­tos civis e políticos, como dos seus direitos económicos, sociais e culturais;

Considerando a Resolução 47/135, de 18 de Dezembro de 1992, da Assembleia-geral da Organização das Nações Unidas, que adopta a Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacio­nais ou étnicas, religiosas e linguísticas;

Considerando as declarações e as convenções do Conselho da Europa, como a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950 (arti­go 14.º); a Convenção do Conselho de Ministros do Conselho da Europa, de 29 de Junho de 1992, na qual foi aprovada a Carta Europeia sobre as línguas regionais ou minoritárias; a Declaração da Cimeira do Conselho da Europa, de 9 de Outubro de 1993, sobre as minorias nacionais; e a Convenção-quadro para a protecção das minorias nacionais, de Novembro de 1994;

Considerando a Declaração de Santiago de Compostela do PEN Internacional e a Declaração de 15 de Dezembro de 1993 do Comité de Tradução e Direitos Linguísticos do PEN Internacional sobre a proposta de realização de uma Conferência Mundial de Direitos Linguísticos;

Considerando que na Declaração do Recife (Brasil), de 9 de Outu­bro de 1987, o XXII Seminário da Associação Internacional para o Desen­volvimento da Comunicação Intercultural recomenda às Nações Unidas que tomem as medidas necessárias à adopção e aplicação de uma Declaração Universal dos Direitos Linguísticos;

Considerando a Convenção número 169 da Organização Interna­cional do Trabalho, de 26 de Junho de 1989, relativa aos povos indígenas em países independentes;

Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Colectivos dos Povos, aprovada em Maio de 1990 em Barcelona, declara que todos os povos têm direito a exprimir e a desenvolver a sua cultura, a sua língua e as suas normas de organização e, para o fazerem, a dotarem-se de estru­turas políticas, educativas, de comunicação e de administração pública próprias, em quadros políticos diferentes;

Considerando a Declaração Final da Assembleia-geral da Federação Internacional de Professores de Línguas Vivas, aprovada em Pécs (Hungria) em 16 de Agosto de 1991, que recomenda que os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem;

Considerando o relatório da Comissão dos Direitos Humanos do Conselho Económico e Social das Nações Unidas, de 20 de Abril de 1994, sobre o texto provisório da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, declaração em que os direitos individuais são considerados à luz dos direi­tos colectivos;

Considerando o texto provisório da Declaração da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre os direitos dos povos indígenas, aprovado na 1278.ª sessão, de 18 de Setembro de 1995;

Considerando que a maioria das línguas ameaçadas do mundo pertencem a comunidades não soberanas e que dois dos principais fac­tores que impedem o desenvolvimento destas línguas e aceleram o processo de substituição linguística são a ausência de autogoverno e a política de Estados que impõem a sua estrutura político-administrativa e a sua língua;

Considerando que a invasão, a colonização e a ocupação, assim como outros casos de subordinação política, económica ou social, implicam frequentemente a imposição directa de uma língua estrangeira ou a dis­torção da percepção do valor das línguas e o aparecimento de atitudes lin­guísticas hierarquizantes que afectam a lealdade linguística dos falantes; e considerando que, por esses motivos, mesmo as línguas de alguns povos que acederam à soberania se confrontam com um processo de substituição linguística decorrente de uma política que favorece a língua das antigas colónias e das antigas potências colonizadoras;

Considerando que o universalismo deve assentar numa concepção da diversidade linguística e cultural que se imponha simultaneamente às tendências homogeneizadoras e às tendências para o isolamento enquan­to factor de exclusão;

Considerando que para garantir a convivência entre comunidades linguísticas é necessário encontrar princípios de carácter universal que per­mitam assegurar a promoção, o respeito e o uso social público e privado de todas as línguas;

Considerando que diversos factores de natureza extralinguística (políticos, territoriais, históricos, demográficos, económicos, socioculturais, sociolinguísticos e relacionados com comportamentos colectivos) geram problemas que provocam o desaparecimento, a marginalização e a degra­dação de numerosas línguas, e que se torna portanto necessário que os direitos linguísticos sejam considerados sob uma perspectiva global, para que se possam aplicar em cada caso as soluções específicas adequadas;

Conscientes de que é necessária uma Declaração Universal dos Direitos Linguísticos que permita corrigir os desequilíbrios linguísticos com vista a assegurar o respeito e o pleno desenvolvimento de todas as línguas e estabelecer os princípios de uma paz linguística planetária justa e equi­tativa, como factor fundamental da convivência social;

DECLARAM:

PREÂMBULO

A situação de cada língua, tendo em conta as considerações prévias, é o resultado da confluência e da interacção de uma multiplicidade de factores: político-jurídicos; ideológicos e históricos; demográficos e territoriais; eco­nómicos e sociais; culturais; linguísticos e sociolinguísticos; interlinguísticos; e, finalmente, subjectivos.

Mais concretamente, a situação actual caracteriza-se por:

— A tendência secular e unificadora da maioria dos Estados para reduzir a diversidade e favorecer atitudes contrárias à pluralidade cultural e ao pluralismo linguístico.

— O processo de mundialização da economia e, consequentemente, do mercado da informação, da comunicação e da cultura, que afecta as esferas de relação e as formas de interacção que garantem a coesão interna de cada comunidade linguística.

— O modelo economicista de crescimento promovido pelos grupos económicos transnacionais, que pretende identificar a desregulação com o progresso e o individualismo competitivo com a liberdade, o que gera graves e crescentes desigualdades económicas, sociais, culturais e linguísticas.

As ameaças que actualmente impendem sobre as comunidades linguísticas, devido à ausência de autogoverno, a uma população reduzida ou parcial ou inteiramente dispersa, a uma economia precária, a uma língua não codifi­cada, ou a um modelo cultural oposto ao predominante, levam a que muitas línguas não possam sobreviver e desenvolver-se se não forem tidos em conta os seguintes objectivos fundamentais:

— Numa perspectiva política, conceber uma organização da diversidade linguística que permita a participação efectiva das comunidades linguís­ticas neste novo modelo de crescimento.

— Numa perspectiva cultural, tornar o espaço de comunicação mundial ple­namente compatível com a participação equitativa de todos os povos, de todas as comunidades linguísticas e de todas as pessoas no processo de desenvolvimento.

— Numa perspectiva económica, promover um desenvolvimento duradouro baseado na participação de todos e no respeito pelo equilíbrio ecológico das sociedades e por relações equitativas entre todas as línguas e culturas.

Por todas estas razões, esta Declaração toma como ponto de partida as comunidades linguísticas e não os Estados, e inscreve-se no quadro do reforço das instituições internacionais capazes de garantir um desenvolvi­mento duradouro e equitativo para toda a humanidade, e tem como finali­dade favorecer um quadro de organização política da diversidade linguísti­ca baseado no respeito, na convivência e no benefício recíprocos.

TITULO PRÉVIO

Conceitos

Artigo 1.º

1. Esta Declaração entende por comunidade linguística toda a sociedade humana que, radicada historicamente num determinado espaço territorial, reconhecido ou não, se identifica como povo e desenvolveu uma língua comum como meio de comunicação natural e de coesão cultural entre os seus membros. A denominação língua própria de um território refere-se ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espaço.

2. Esta Declaração parte do princípio de que os direitos linguísticos são simultaneamente individuais e colectivos, e adopta como referência da plenitude dos direitos linguísticos, o caso de uma comunidade linguísti­ca histórica no respectivo espaço territorial, entendendo-se este não apenas como a área geográfica onde esta comunidade vive, mas tam­bém como um espaço social e funcional indispensável ao pleno desen­volvimento da língua. É com base nesta premissa que se podem estabe­lecer, em termos de uma progressão ou continuidade, os direitos que correspondem aos grupos linguísticos mencionados no ponto 5 deste artigo e os das pessoas que vivem fora do território da sua comunidade.

3. Para os efeitos desta Declaração, entende-se que se encontram no seu próprio território e pertencem a uma mesma comunidade linguística as colectividades que:

i.  se encontram separadas do núcleo da sua comunidade por fronteiras políticas ou administrativas;

ii. se encontram historicamente radicadas num espaço geográfico redu­zido, rodeado pelos membros de outras comunidades linguísticas; ou

iii. se encontram estabelecidas num espaço geográfico que partilham com os membros de outras comunidades linguísticas com antece­dentes históricos semelhantes.

4. Para os efeitos desta Declaração, consideram-se igualmente como comunidades linguísticas no interior do seu próprio território histórico os povos nómadas nas suas áreas históricas de deslocação e os povos de fixação dispersa.

5. Esta Declaração considera como grupo linguístico toda a colectividade humana que partilhe uma mesma língua e esteja radicada no espaço territorial de outra comunidade linguística, mas não possua antece­dentes históricos equivalentes, como é o caso dos imigrantes, dos refu­giados, dos deportados, ou dos membros das diásporas.

Artigo 2.º

1. Esta Declaração considera que, nos casos em que diferentes comuni­dades e grupos linguísticos coabitam num mesmo território, o exercício dos direitos formulados nesta Declaração deve reger-se pelo respeito entre todos e dentro das máximas garantias democráticas.

2. Com vista a estabelecer um equilíbrio sociolinguístico satisfatório, ou seja, a articulação adequada entre os direitos destas comunidades e destes grupos linguísticos e os das pessoas que os compõem, há que ter em conta, além dos seus antecedentes históricos e da sua vontade democraticamente expressa, factores que podem aconselhar um trata­mento compensador que permita restabelecer o equilíbrio: o carácter forçado das migrações que levaram à coabitação de diferentes comu­nidades e grupos, ou o seu grau de precaridade política, socioeconómica e cultural.

Artigo 3.º

1.  Esta Declaração considera como direitos individuais inalienáveis que devem ser exercidos em todas as situações os seguintes:

o direito a ser reconhecido como membro de uma comunidade linguística;

o direito ao uso da língua em privado e em público;

o direito ao uso do próprio nome;

o direito a relacionar-se e associar-se com outros membros da comu­nidade linguística de origem;

o direito a manter e desenvolver a própria cultura;

e todos os outros direitos de carácter linguístico reconhecidos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 16 de Dezembro de 1966 e no Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais da mesma data.

2. Esta Declaração considera que os direitos colectivos dos grupos lin­guísticos podem incluir ainda, em acréscimo aos estabelecidos no núme­ro anterior, e de acordo com as especificações do ponto 2 do artigo 2°:

o direito ao ensino da própria língua e da própria cultura;

o direito a dispor de serviços culturais;

o direito a uma presença equitativa da língua e da cultura do grupo nos meios de comunicação;

o direito a serem atendidos na sua língua nos organismos oficiais e nas relações socioeconómicas.

3. Os direitos das pessoas e dos grupos linguísticos mencionados anterior­mente não devem representar qualquer obstáculo à sua interrelação e à integração na comunidade linguística de acolhimento, nem qualquer limi­tação dos direitos desta comunidade ou dos seus membros ao pleno uso público da própria língua na totalidade do seu espaço territorial.

Artigo 4.º

1. Esta Declaração considera que as pessoas que se deslocam e fixam residência no território de uma comunidade linguística diferente da sua têm o direito e o dever de manter com ela uma relação de integração. Por integração entende-se uma socialização adicional destas pessoas por forma a poderem conservar as suas características culturais de origem, ao mesmo tempo que compartilham com a sociedade que as acolhe as referências, os valores e os comportamentos que permitirão um funcionamento social global, sem maiores dificuldades que as experi­mentadas pelos membros da sociedade de acolhimento.

2. Por outro lado, esta Declaração considera que a assimilação — enten­dida como a aculturação das pessoas na sociedade que as acolhe, de tal maneira que substituam as suas características culturais de origem pelas referências, pelos valores e pelos comportamentos próprios da sociedade de acolhimento — em caso nenhum deve ser forçada ou indu­zida, antes sendo o resultado de uma opção plenamente livre.

Artigo 5.º

Esta Declaração baseia-se no princípio de que os direitos de todas as co­munidades linguísticas são iguais e independentes do seu estatuto jurídico ou político como línguas oficiais, regionais ou minoritárias. Designações tais como língua regional ou minoritária não são usadas neste texto porque, ape­sar de em certos casos o reconhecimento como língua minoritária ou regional poder facilitar o exercício de determinados direitos, a utilização destes e doutros adjectivos serve frequentemente para restringir os direitos de uma comunidade linguística.

Artigo 6.º

Esta Declaração exclui que uma língua possa ser considerada própria de um território unicamente por ser a língua oficial do Estado ou ser tradi­cionalmente utilizada nesse território como língua de administração ou de certas actividades culturais.

TÍTULO PRIMEIRO

Princípios gerais

Artigo 7.º

1. Todas as línguas são a expressão de uma identidade colectiva e de uma maneira distinta de apreender e descrever a realidade, pelo que devem poder beneficiar das condições necessárias ao seu desenvolvimento em todas as funções.

2. Cada língua é uma realidade constituída colectivamente e é no seio de uma comunidade que ela está disponível para o uso individual como instrumento de coesão, identificação, comunicação e expressão criadora.

Artigo 8.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm o direito de organizar e gerir os seus próprios recursos, com vista a assegurarem o uso da sua língua em todas as funções sociais.

2. Todas as comunidades linguísticas têm o direito de dispor dos meios ne­cessários para assegurarem a transmissão e a projecção futuras da língua.

Artigo 9.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a codificar, estandardizar, preservar, desenvolver e promover o seu sistema linguístico, sem interferên­cias induzidas ou forçadas.

Artigo 10.º

1. Todas as comunidades linguísticas são iguais em direito.

2. Esta Declaração considera inadmissíveis as discriminações contra as co­munidades linguísticas baseadas em critérios como o seu grau de sobera­nia política, a sua situação social, económica ou qualquer outra, ou o nível de codificação, actualização ou modernização alcançado pelas suas línguas.

3. Em aplicação do princípio da igualdade, devem ser tomadas as medidas indispensáveis para que esta igualdade seja real e efectiva.

Artigo 11.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a beneficiar dos meios de tradução nos dois sentidos que garantam o exercício dos direitos cons­tantes desta Declaração.

Artigo 12.º

1. No domínio público, todos têm o direito de desenvolver todas as activi­dades na sua língua, se for a língua própria do território onde residem.

2. No plano pessoal e familiar, todos têm o direito de usar a sua língua.

Artigo 13.º

1. Todos têm direito a aceder ao conhecimento da língua própria da comu­nidade onde residem.

2. Todos têm direito a serem poliglotas e a saberem e usarem a língua mais apropriada ao seu desenvolvimento pessoal ou à sua mobilidade social, sem prejuízo das garantias previstas nesta Declaração para o uso público da língua própria do território.

Artigo 14.º

As disposições desta Declaração não podem ser interpretadas nem utilizadas em detrimento de qualquer norma ou prática do regime interno ou internacional mais favorável ao uso de uma língua no território que lhe é próprio.

TÍTULO SEGUNDO

Regime linguístico geral

Secção l Administração pública e organismos oficiais

Artigo 15.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a que a sua língua seja utilizada como língua oficial dentro do seu território.

2. Todas as comunidades linguísticas têm direito a que as acções judiciais e administrativas, os documentos públicos e privados e as inscrições em registos públicos realizados na língua própria do território sejam válidos e eficazes, e ninguém possa alegar o desconhecimento dessa língua.

Artigo 16.º

Todo o membro de uma comunidade linguística tem direito a exprimir-se e a ser atendido na sua língua, nas suas relações com os serviços dos poderes públicos ou das divisões administrativas centrais, territoriais, locais e supraterritoriais aos quais pertence o território de que essa língua é própria.

Artigo 17.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor e a obter na sua lín­gua toda a documentação oficial, qualquer que seja o suporte (papel, informáti­co, ou outro), nas relações respeitantes ao território de que essa língua é própria.

2. Os poderes públicos devem dispor de formulários, impressos e modelos, em papel, suporte informático, ou outro, nas línguas territoriais, e colocá-los à disposição do público nos serviços respeitantes aos territórios de que cada língua é própria.

Artigo 18.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a que as leis e outras dis­posições jurídicas que lhes digam respeito sejam publicadas na língua própria do território.

2. Os poderes públicos em cujo âmbito de actuação exista mais de uma lín­gua territorialmente histórica devem publicar todas as leis e outras dis­posições de carácter geral nessas línguas, independentemente de os seus falantes compreenderem outras línguas.

Artigo 19.º

1. As Assembleias de representantes devem adoptar como oficiais a língua ou as línguas historicamente faladas no território que representam.

2. Este direito é extensivo às línguas das comunidades de fixação disper­sa referidas no artigo 1.º, n.º 4.

Artigo 20.º

1. Todos têm direito a utilizar oralmente e por escrito, nos Tribunais de Justiça, a língua historicamente falada no território onde estão situados. Os Tribunais devem utilizar a língua própria do território nas suas acções internas e se, por força da organização judicial do Estado, o procedi­mento prosseguir fora do lugar de origem, deverá manter-se a utilização da língua de origem.

2. De qualquer maneira, todos têm direito a serem julgados numa língua que sejam capazes de compreender e possam falar, ou a obterem gratuitamente um intérprete.

Artigo 21.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a que as inscrições nos registos públicos sejam feitas na língua própria do território.

Artigo 22.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a que os documentos notariais ou oficiais emitidos por funcionários que exerçam a autoridade pública sejam redigidos na língua própria do território onde o notário ou o funcionário autorizado tem oficialmente a sua sede.

Secção II

Ensino

Artigo 23.º

1. O ensino deve contribuir para fomentar a capacidade de auto-expressão linguística e cultural da comunidade linguística do território onde é ministrado.

2. O ensino deve contribuir para a manutenção e o desenvolvimento da língua falada pela comunidade linguística do território onde é ministrado.

3. O ensino deve estar sempre ao serviço da diversidade linguística e cultural, e das relações harmoniosas entre as diferentes comunidades linguísticas do mundo inteiro.

4. No quadro dos princípios anteriores, todos têm direito a aprender qualquer língua.

Artigo 24.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a decidir qual deve ser o grau de presença da sua língua, como língua veicular e como objecto de estudo, em todos os níveis de ensino no interior do seu território: pré-escolar, primário, secundário, técnico e profissional, universitário e formação de adultos.

Artigo 25.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor de todos os recursos humanos e materiais necessários para alcançar o grau desejado de presença da sua língua em todos os níveis de ensino no interior do seu território: pro­fessores devidamente formados, métodos pedagógicos adequados, manuais, financiamento, edifícios e equipamentos, meios tecnológicos tradicionais e inovadores.

Artigo 26.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a um ensino que permita a todos os seus membros adquirirem o perfeito conhecimento da sua própria língua, com as diversas capacidades relativas a todos os domínios de uso da língua habituais, bem como o melhor conhecimento possível de qualquer outra língua que desejem aprender.

Artigo 27.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a um ensino que permita aos seus membros o conhecimento das línguas ligadas à sua própria tradição cultural, tais como as línguas literárias ou sagradas, usadas antigamente como línguas habituais da sua comunidade.

Artigo 28.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a um ensino que permita aos seus membros adquirirem um conhecimento profundo do seu património cultural (história e geografia, literatura e outras manifestações da própria cultura), assim como o melhor conhecimento possível de qualquer outra cultura que desejem conhecer.

Artigo 29.º

1. Todos têm direito ao ensino na língua própria do território onde residem.

2. Este direito não exclui o direito de acesso ao conhecimento oral e escrito de qualquer língua que lhes sirva de instrumento de comunicação com outras comunidades linguísticas.

Artigo 30.º

A língua e a cultura de cada comunidade linguística devem ser objecto de estudo e de investigação a nível universitário.

Secção III

Onomástica

Artigo 31.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a preservar e usar em todos os domínios e ocasiões o seu sistema onomástico.

Artigo 32.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a fazer uso dos topónimos na língua própria do território, tanto no que respeita às utilizações orais e escritas, como nos domínios privados, públicos e oficiais.

2. Todas as comunidades linguísticas têm direito a fixar, preservar a rever a toponímia autóctone. Esta não pode ser suprimida, alterada ou adaptada arbitrariamente, nem pode ser substituída em caso de mudanças de conjuntura política ou outras.

Artigo 33.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a designarem-se a si próprias na sua língua. Consequentemente, qualquer tradução para outras línguas deve evitar denominações confusas ou pejorativas.

Artigo 34.º

Todos têm direito ao uso do seu antropónimo na sua própria língua e em todos os domínios de utilização, bem como a uma transcrição fonética para outro sistema gráfico, quando necessário, tão fiel quanto possível.

Secção IV

Meios de comunicação e novas tecnologias

Artigo 35.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a decidir qual deve ser o grau de presença da sua língua nos meios de comunicação do seu território, tanto nos locais e tradicionais, como nos de maior difusão e de tecnologia mais avançada, independentemente do sistema de difusão ou de transmissão utilizado.

Artigo 36.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor de todos os meios humanos e materiais necessários para assegurar o grau desejado de presença da sua língua e de auto-expressão cultural nos meios de comuni­cação do seu território: pessoal devidamente formado, financiamento, edifí­cios e equipamentos, meios tecnológicos tradicionais e inovadores.

Artigo 37.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a obter, através dos meios de comunicação, um conhecimento profundo do seu património cultural (história e geografia, literatura e outras manifestações da própria cultura), assim como o máximo de informação possível sobre qualquer outra cultura que os seus membros desejem conhecer.

Artigo 38.º

Todas as línguas e todas as culturas das comunidades linguísticas devem receber um tratamento equitativo e não discriminatório nos conteúdos dos meios de comunicação do mundo inteiro.

Artigo 39.º

As comunidades descritas no artigo 1.º, n.ºs 3 e 4, desta Declaração, assim como os grupos mencionados no n.º 5 do mesmo artigo, têm direito a uma representação equitativa da sua língua nos meios de comunicação do território onde se fixaram ou para onde se deslocam. O exercício deste direito deve estar em harmonia com o exercício dos direitos próprios dos outros grupos ou comunidades linguísticas do ter­ritório.

Artigo 40.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a dispor, no campo da infor­mática, de equipamentos adaptados ao seu sistema linguístico e de uten­sílios e produtos na sua língua, a fim de aproveitarem ao máximo as potencialidades oferecidas por estas tecnologias no que respeita à auto-expressão, à educação, à comunicação, à edição, à tradução e, em geral, ao tratamento da informação e à difusão cultural.

Secção V

Cultura

Artigo 41.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a usar a sua língua e a mantê-la e promovê-la em todas as formas de expressão cultural.

2. O exercício deste direito deve poder ser plenamente assegurado sem que o espaço da comunidade em questão seja ocupado de forma hegemónica por uma cultura estrangeira.

Artigo 42.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a desenvolverem-se plenamente no seu próprio domínio cultural.

Artigo 43.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito ao acesso às obras produzi­das na sua língua.

Artigo 44.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito ao acesso às programações interculturais, mediante a difusão de uma informação suficiente, e ao apoio às actividades de ensino da língua a estrangeiros, ou de tradução, de dobragem, de pós-sincronização e de legendagem.

Artigo 45.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito a que a língua própria do ter­ritório ocupe um lugar de primazia nas manifestações e serviços culturais, tais como bibliotecas, videotecas, cinemas, teatros, museus, arquivos, produção informática, folclore, indústrias culturais e todas as outras formas de expressão que derivem da realidade cultural.

Artigo 46.º

Todas as comunidades linguísticas têm direito à preservação do seu património linguístico e cultural, incluindo as manifestações materiais, como por exemplo, os fundos documentais, a herança artística, arquitectónica e monumental e a presença epigráfica da sua língua.

Secção VI

Esfera socioeconómica

Artigo 47.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a estabelecer o uso da sua língua em todas as actividades socioeconómicas no interior do seu território.

2. Qualquer membro de uma comunidade linguística tem o direito de dispor na sua língua de todos os meios necessários ao exercício da actividade profissional, como por exemplo, documentos e livros de consulta, instruções, formulários e equipamentos, utensílios e programas informáticos.

3. A utilização de outras línguas neste domínio só é exigível na medida em que a natureza da actividade profissional desenvolvida o justificar. Em caso nenhum outra língua que tenha aparecido mais recentemente pode subordinar ou suplantar o uso da língua própria do território.

Artigo 48.º

1. No território da comunidade linguística, todos têm o direito de usar a sua língua, com plena validade jurídica, nas transacções económicas de qualquer tipo, como por exemplo, a compra-venda de bens e ser­viços, as operações bancárias, os seguros, os contratos de trabalho e outros.

2. Nenhuma cláusula destes actos privados pode excluir ou limitar o uso de uma língua no seu próprio território.

3. No território da comunidade linguística, todos têm o direito de dispor na sua língua dos documentos necessários à realização das operações mencionadas, como por exemplo, impressos, formulários, cheques, contratos, facturas, recibos, licenças, notas de encomenda e outros.

Artigo 49.º

No território da comunidade linguística, todos têm direito a usar a sua língua em todos os tipos de organizações socioeconómicas: laborais, sindicais, patronais, profissionais e associativas.

Artigo 50.º

1. Todas as comunidades linguísticas têm direito a uma presença predomi­nante da sua língua na publicidade, na rotulagem, na sinalização exterior e na imagem do país em geral.

2. No território da comunidade linguística, todos têm o direito de obter na sua língua uma informação completa, tanto oral como escrita, sobre os produtos e serviços propostos pelos estabelecimentos comerciais do ter­ritório, como por exemplo, as instruções de utilização, os rótulos, as listas de ingredientes, a publicidade, as garantias e outros.

3. Todas as indicações públicas relativas à segurança dos cidadãos devem ser expressas na língua própria da comunidade linguística e em condi­ções não inferiores às de qualquer outra língua.

Artigo 51.º

1. Todos têm o direito de usar a língua própria do território nas suas rela­ções com as empresas, os estabelecimentos comerciais e as entidades privadas e de serem atendidos e obterem resposta nessa língua.

2. Todos têm direito, como clientes, consumidores, utentes, ou utilizadores, a serem informados, oralmente ou por escrito, na língua própria do território nos estabelecimentos abertos ao público.

Artigo 52.º

Todos têm direito a exercer as suas actividades laborais ou profissionais na língua própria do território, excepto se as funções inerentes ao posto de trabalho exigirem a utilização de outros idiomas, como no caso dos profes­sores de línguas, dos tradutores, ou dos guias turísticos.

DISPOSIÇÕES ADICIONAIS

Primeira

Os poderes públicos devem tomar todas as medidas oportunas para a aplicação, no seu âmbito de actuação, dos direitos proclamados nesta Decla­ração. Mais concretamente, devem disponibilizar fundos internacionais de apoio ao exercício dos Direitos Linguísticos para as comunidades manifes­tamente carenciadas de recursos. Assim, os poderes públicos devem proporcionar o apoio necessário à codificação, à transcrição escrita, ao ensino das línguas das diversas comunidades e à sua utilização na administração.

Segunda

Os poderes públicos devem garantir que as autoridades, as organizações e as pessoas interessadas sejam informadas dos direitos e deveres correlativos decorrentes desta Declaração.

Terceira

Os poderes públicos devem prever, de acordo com as legislações vigentes, as sanções decorrentes da violação dos direitos linguísticos constantes desta Declaração.

DISPOSIÇÕES FINAIS

O Plenário da Associação Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação Intercultural recomenda às Nações Unidas que tomem as medidas necessárias à adopção e aplicação de uma Declaração Universal dos Direitos Linguísticos;

Considerando a Convenção número 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 26 de Junho de 1989, relativa aos povos indígenas em países independentes;

Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Colectivos dos Povos, realizada em Maio de 1990 em Barcelona, declara que todos os povos têm direito a exprimir e a desenvolver a sua cultura, a sua língua e as suas normas de organização e, para o fazerem, a dotarem-se de estru­turas políticas, educacionais, de comunicação e de administração pública próprias, em quadros políticos diferentes;

Considerando a Declaração Final da Assembleia-geral da Federação Inter­nacional de Professores de Línguas Vivas, aprovada em Pécs (Hungria) em 16 de Agosto de 1991, que recomenda que os direitos linguísticos sejam consagrados direitos fundamentais;

Primeira

Esta Declaração propõe a criação do Conselho das Línguas no seio das Nações Unidas. Compete à Assembleia Geral das Nações Unidas a criação e a definição deste Conselho, assim como a nomeação dos seus membros, e a criação do organismo de direito internacional que deve apoiar as comu­nidades linguísticas no exercício dos direitos reconhecidos nesta Declaração.

Segunda

Esta Declaração recomenda e promove a criação de uma Comissão Mundial de Direitos Linguísticos de natureza não oficial e de carácter con­sultivo, constituída por representantes de organizações não governamen­tais e de entidades ligadas ao direito linguístico.

Barcelona, Junho de 1996