No passado dia 11 de Dezembro teve lugar na Galeria Carlos Paredes da SPA a entrega dos Prémios PEN. Deixamos aqui na página os discursos realizados pela Direcção do PEN e pelos representantes dos júris.

DISCURSOS NA ENTREGA DOS PRÉMIOS PEN

Do Senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa
https://youtu.be/_uFUP4Krb00

1. Da Presidente do PEN – Teresa Martins Marques
Saúdo o Presidente da SPA, Dr. José Jorge Leria, nosso anfitrião, bem como as individualidades presentes: Sr. Secretário de Estado da Cultura, Dr. Nuno Artur Silva, Drª Catarina Vaz Pinto, Dr. David Teles Pereira, Drª Maria Carlos Loureiro (que representa a DGLAB, patrocinadora dos prémios), a quem agradecemos a constante ajuda e aconselhamento que gentilmente nos presta. Saúdo todos os presentes, sócios e amigos do PEN. Na pessoa do Prof. Guilherme d ‘Oliveira Martins, novo sócio do PEN, saúdo todos os que se vêm juntando a nós, desde a nossa eleição, em Fevereiro deste ano.
Saúdo Tatiana Faia pelo Prémio de Poesia, Julieta Monginho pelo Prémio de Narrativa, Mafalda de Faria Blanc e Luís Filipe Thomaz pelo Prémio de Ensaio ex-aequo. Felicito os júris que, a troco de uma retribuição mais do que simbólica, desempenharam com seriedade e competência o papel que lhes foi confiado: Luís Filipe de Castro Mendes, Paulo José Miranda, Marta Bernardes, Rui Mesquita, Isabel Ponce de Leão, Teresa Sousa de Almeida, Fernanda Mota Alves, Mário Avelar, Ernesto Rodrigues.
Congratulo-me vivamente com a atribuição dos prémios e deixarei as considerações sobre os seus méritos aos respectivos júris.
Permitam-me que, a traços largos, vos apresente a organização que confere os prémios – o PEN Clube Português afiliado ao PEN Internacional, fundado em Londres em 1921 por Catherine Amy Dawson Scott e John Galsworthy, seu primeiro Presidente e prémio Nobel em 1932. Entre os primeiros membros contam-se Joseph Conrad, Elizabeth Craig, George Bernard Shaw. Alguns dos seus presidentes foram Alberto Moravia, Heinrich Boll, Arthur Miller, Mario Vargas Llosa e actualmente Jennifer Clement, a primeira mulher, em quase 100 anos de actividade do PEN International.
O PEN está hoje em 152 países, é a maior e a mais importante organização mundial de escritores, empenhada na defesa da liberdade de expressão, bem como de direitos e valores humanistas. Estes princípios e valores estão consignados na Carta do PEN onde se lê (e cito)
«Os seus membros comprometem-se a combater toda e qualquer forma de atentado à liberdade de expressão no país e na comunidade a que pertencem, bem como no mundo, onde quer que isso seja possível. O P.E.N. defende uma imprensa livre e opõe-se à censura arbitrária em tempo de paz. Acredita que o necessário avanço do mundo em direcção a uma ordem política e económica mais elevadas, torna imperativo o exercício da crítica a governos, administrações e instituições. E dado que a liberdade implica auto-restrição, os membros do P.E.N. comprometem-se a fazer oposição a tais males na imprensa livre, como a divulgação de mentiras, falsidades deliberadas e distorção de factos para fins políticos e pessoais.»
Na estrita obediência a estes princípios queremos hoje homenagear Daphne Caruana Galizia, assassinada aos 53 anos, em 16 de Outubro de 2017, com uma bomba colocada debaixo do seu carro, que espalhou os pedaços do seu corpo a grande distância. No estrito exercício da sua profissão, a jornalista investigava os Panama Papers. As recentes demissões de Ministros do governo de Malta, e sobretudo de Keith Schembri, chefe de Gabinete do Primeiro Ministro Joseph Muscat, bem como a prisão do empresário Yorgen Fenech, mostram-nos que Daphne Caruana Galizia seguia as pistas certas e por isso foi silenciada. O antigo Presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker repudiou este crime e lembrou, uma vez mais, que o direito e o dever do jornalista é investigar, fazer perguntas incómodas, reportar e defender os valores da liberdade.
Foram os valores de liberdade que faltaram em Portugal durante o Estado Novo e que fizeram gorar várias tentativas de criação do PEN. Foi necessário esperar pela revolução de Abril para que um grupo de vinte e quatro dos mais prestigiados escritores portugueses, entre eles Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, Vergílio Ferreira, Jacinto do Prado Coelho, finalmente pudessem fazer uma petição de adesão ao PEN Internacional em 15 de Novembro de 1974, tendo sido acolhidos no 39º Congresso que nesse ano se realizou em Jerusalém. Quatro anos passaram até ser feita a escritura de constituição em 26 de Dezembro de 1978, assinada por Ana Hatherly, Pedro Tamen, Fernando Namora e E. M.de Melo e Castro.
A direcção a que tenho a honra de presidir foi eleita em 13 de Fevereiro de 2019 e instituiu as Leituras Públicas , na livraria Ferin, convidando três representantes do acrónimo PEN – Poetas, Ensaístas e Narradores.
Para as Leituras Públicas PEN realizadas em Maio e Setembro já contámos com a presença dos poetas Luís Filipe de Castro Mendes e Nuno Júdice; dos ensaístas Manuel Frias Martins e Artur Anselmo; dos narradores Teolinda Gersão e Jaime Rocha. Nas próximas Leituras Públicas PEN temos já assegurada a presença de Ana Marques Gastão, Rita Marnoto, Mário de Carvalho, Pedro Mexia, Onésimo Almeida e Lídia Jorge, todos eles sócios do PEN Clube Português.
Promovemos uma homenagem a Sophia e a Jorge de Sena na Biblioteca da Imprensa Nacional tendo sido conferencistas Miguel Serras Pereira e Margarida Braga Neves reconhecidos ensaístas, especialistas destes autores e sócios do PEN. Todas estas iniciativas têm tido um fantástico acolhimento do público, que assina a presença num livro próprio, onde já figuram mais de duas centenas de assinaturas de participantes.
Uma instituição, para perdurar e ser respeitada, tem de renovar os seus quadros e tem de conferir transparência às suas actividades. É isto que os Estatutos do PEN preconizam e permitam-me que chame a atenção para duas regras de ouro – a primeira: os corpos sociais não podem ultrapassar dois mandatos, num total de seis anos. A segunda: o regulamento dos Prémios PEN torna obrigatório um intervalo de cinco anos entre a atribuição do prémio ao mesmo escritor.
As instituições literárias precisam de renovação a todos os níveis, independentemente da qualidade dos seus antigos sócios e dirigentes. Estamos a trazer para o PEN novos sócios – poetas, ficcionistas, dramaturgos, cronistas, prestigiados jornalistas, mas também muitos ensaístas, que nem sempre foram considerados como escritores, esquecendo-se que são justamente os ensaístas que estabelecem o cânone literário e com o seu trabalho fora dos holofotes mediáticos estudam e fazem perdurar as obras.
Os ensaístas sabem que a «A literatura é o domínio do instável, miragem de eternidade que paira sobre a corrente dos anos e dos séculos. Um absoluto à escala humana: fica e passa.» Escreveu-o o ensaísta Jacinto do Prado Coelho, na colectânea intitulada Ao Contrário de Penélope (1976).
A literatura passa e fica ao constituir-se tradição que é passado presentificado em cada nova leitura que, a partir daquele tempo pretérito, os ensaístas constroem novas e sempre transitórias interpretações. E porque o conhecimento, a qualquer nível que o consideremos, faz parte de quem conhece, torna-se inevitavelmente transitório, porque em cada momento se represent(ific)a tornando-se tradição civilizacional, memória do conhecimento da humanidade. Memória que não se apresenta como simples e linear sucessão de épocas, interligando-se de forma a que o presente condicione o passado transcorrido, modificando a leitura que dele se faz no presente. Por isso esse passado- memória-civilizacional torna o ser humano infinitamente rico, já que é património cultural acumulado que lhe deu lastro intelectual, mas também infinitamente pobre, impedindo-o de pensar como nunca ninguém antes pensou.
Aquilo que chamamos invenção, inovação em qualquer ramo do conhecimento é ínfima gota de criatividade individual que só existe como gota, porque é produto do “mare magnum “da cultura acumulada por sucessivas gerações. E porque o conhecimento passado permite o conhecimento presente, nunca aquele é verdadeiramente passado nem este verdadeiramente presente. Sem Newton não teríamos Einstein. Sem Homero não teríamos Virgílio e Camões.
A literatura, sendo conhecimento, não foge à inevitabilidade de ser morte que vivifica, de ser tradição que gera inovação.
Como cidadã e como escritora, entendo que não podemos ter uma visão exterior do tempo em que vivemos, muito menos uma posição acomodada do nosso papel. O tempo em que vivemos depende do nosso empenhamento, determinação e acção. A literatura não pode ser apenas mero exercício de linguagem. A literatura tem de ser uma escrita de valor e de valores.
Perguntaram um dia a David Mourão-Ferreira, para quem escrevia e respondeu: escrevo para as pessoas comuns, como forma de diálogo com elas, para os inquietos, os inconformistas, para os que resistem e não desistem de melhorar o tempo em que vivem. Para os que querem fazer a diferença, conforme nos ensinou José Rodrigues Miguéis n’O Espelho Poliédrico: “A melhor maneira de ser igual aos outros não é ser como eles, mas ser diferente: é sermos nós-mesmos até ao limite. O que torna os homens iguais é o direito a serem diversos.”
Neste tempo em que vivemos os agentes culturais, mantendo a sua identidade e diversidade, têm de juntar esforços, para a promoção da cultura. Conforme nos disse Albert Camus, “sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro. “

Teresa Martins Marques
Presidente do PEN Clube Português

 

2. De Paulo José Miranda – porta-voz do Júri de Poesia
O júri de poesia decidiu por unanimidade atribuir o prémio ao livro Um Quarto em Atenas, de Tatiana Faia, publicado em 2018 pela Tinta da China, indicando as seguintes razões: a segura afirmação de uma voz através de uma poética narrativa que dialoga com a história da poesia, que descortina ao longo dos versos a perplexidade da confluência entre os mitos que formam a Europa e a sua realidade actual, e também o desenvolvimento lírico da possibilidade da condição humana residir na falta e no exílio de todas as pátrias.
No fragmento 21, Novalis escreveu: “A filosofia é na verdade uma saudade da pátria, um impulso para se estar em toda a parte em casa.” [Die Philosophie ist eigentlich Heimweh, ein Trieb überall zu Hause zu Sein] E se a primeira parte é compartilhada pela poesia, a saudade da pátria, muito diferente parece ser a vivência da poesia em relação à segunda parte, um impulso para se estar em toda a parte em casa. Não direi que a poesia inverta totalmente esta posição, mas o livro Um Quarto em Atenas, de Tatiana Faia, aproxima-se disso e parece mostrar-nos, poema a poema, que a condição humana é a de ser naturalmente fora de casa. A condição humana é a de que estejamos onde estivermos, e a despeito de qualquer esforço, só o exílio parece assentar-nos bem e só a saudade erige paredes à nossa volta, traçando a arquitectura possível com que nos defendemos das intempéries que assolam a existência. Saudade, a habitação possível, tem tanto de memória quanto de imaginação, e a memória tem muito mais da história dos outros, da história do tempo que houve antes de nós, do que da história individual. Assim, a saudade da pátria de que falava Novalis ser o quid da filosofia, e que também poderia ser o quid da poesia, faz-se sentir de um modo muito intenso em Um Quarto em Atenas, onde nos encontramos com uma saudade da história, uma saudade do tempo em que não fomos. A este tempo que não fomos, o da história universal, dos mitos clássicos, dos poetas anteriores a nós, junta-se o nosso próprio tempo, individual, que também não fomos, ou por distracção, ou por incúria ou por medo, ou porque quando estávamos a ser não nos dávamos conta de estarmos a ser, ou, na sua expressão mais cruel, por termos nascido numa geração que as más políticas quiseram errada, fantasma que assola todo o livro.
É naquele lugar estreito entre estar a ser e dar-se conta disso que desponta a poesia. O tempo da história, esse tempo que nos falta, não surge em Um Quarto em Atenas como saudosismo, como lamento de outras eras, mas como evidência de que nós somos constituídos pelo que nos falta. Esta é a nossa pátria: a falta, não só do que fomos e do que foi o mundo, mas também falta do que seremos e do que será o mundo. A falta do que somos ilumina o mundo e a história é o seu registo. O movimento da poesia não é o de tentar estar em casa em qualquer parte, mas o de reconhecer que não há casa, mesmo na Pátria, como já Ulisses ou Homero ou os mitos nos mostraram. E Tatiana Faia escreve-o exemplarmente, no coração dos textos do coração da Europa, em Um Quarto em Atenas. A sua poesia movimenta-se entre uma narrativa cuja tradição começa em Homero, passando pela tragédia, até à lírica próxima de Jorge de Sena, Sophia, Ruy Belo, António José Forte, Dylan Thomas ou Yannis Ritsos. Poesia que se movimenta em poemas longos, que fundem a experiência com a tradição, não apenas pensando esta última, como mostrando ao longo dos versos que não há leitura sem apropriação pessoal, sem transformação, como um exercício de “indagar sobre as origens do épico e do trágico”, como Tatiana escreve num verso do poema “Sophia Entre os Constitucionalistas”. Os nomes são inúmeros neste livro. E de cada vez que aparecem, parecem-nos sempre ser indispensáveis, como se os nomes fossem os amigos que nos restam, que vão restando, “que sobrevivem à peste”, como escreve Tatiana. Assim, adivinha-se que ler seja, como na paixão, ser-se virado do avesso. Ser virado do avesso é também um verso de Tatiana. Ler é um modo barato e eficaz de salvar o mundo.
Um Quarto em Atenas é um livro rigoroso, porque atento às variações mínimas do existir – e não resisto a citar estes dois versos: “um pedido que não pode ser feito porque ninguém / existe apenas para te salvar do erro de existir” – e hipnótico, porque a narrativa dos seus poemas se move em ondas espaçadas de lirismo que nos encanta, não nos deixa desistir, como nestes versos: “ela tocou-me exactamente / no ponto em que um corpo / pode ser aberto ao meio / onde pode ser conhecido / e onde é mais visível o primeiro erro”. Um livro belo, que ilumina os dias e a história, ou como Tatiana escreve – melhor –, terminando a segunda parte do poema “Cinco Visões do Paraíso Terrestre”: “extraindo o que merece um pouco de silêncio / ao barulho de todas os dias”.
3. De Ernesto Rodrigues – porta- voz do Júri de Ensaio
Candidataram-se 26 títulos ao Prémio de Ensaio e não foi fácil, em primeira selecção, escolher um quinto dos finalistas, tal a qualidade dos trabalhos, alguns fruto de dissertações e teses. Desde a história da inquisição de Lisboa, matéria temporalmente mais afastada, até às biografias do Cardeal Cerejeira e de Ramalho Eanes; desde a nossa presença linguística e cultural no mundo ao significado de Fátima e de José Cardoso Pires na mundividência portuguesa, não deixámos de admirar inesperados trabalhos sobre cinema, olhos e visão, química e matemática, ou parceria sobre G. Steiner, no conjunto maior da Literatura, da Filosofia e da História.
Nessa lista mais restrita, incluímos O Mundo Gay de António Botto, de Anna M. Klobucka, Ler Pessoa, de Jerónimo Pizarro, e O Orientalismo Português e as Jornadas de Tomás Ribeiro, de Everton V. Machado, investigadores que nasceram lá fora e assim se lusitanizam. Se António Botto refaz o seu percurso para um justo reconhecimento, que chegou a ter ao lado de Fernando Pessoa, este tem em Pizarro um dos melhores exegetas, que aqui oferece uma excelente introdução sobretudo aos heterónimos.
O orientalismo português e as Jornadas de Tomás Ribeiro. Caracterização de um problema é um dos dois volumes de uma publicação que inclui a reedição da obra indicada no título, e consiste num estudo bem informado e crítico do orientalismo português.
Tomando como referência a obra seminal de Edward W. Said, que descreve um sistema de conhecimento do Oriente assente num discurso que articula poder e saber, e recuperando a noção de hiperidentidade proposta por Eduardo Lourenço para o entendimento da cultura portuguesa, esta obra apresenta o orientalismo português como um problema a equacionar; propõe, nesse sentido, um entendimento deste fenómeno que se coloque para além da fixação numa visão heróica do passado, e constata a vigência de padrões políticos e culturais análogos aos do imperialismo europeu em geral. Trata-se de um trabalho de grande rigor científico, que associa a análise cultural a práticas filológicas e comparatistas, e que propõe uma visão desassombrada de um fenómeno que permanece envolto no nevoeiro da autocomplacência lusitana.
Optámos, todavia, por distinguir, ex aequo, a Filosofia e a História.
Estudos sobre Heidegger, de Mafalda de Faria Blanc, é um trabalho de particular relevância para o conhecimento actualizado, junto dos leitores de língua portuguesa, de um dos pensadores mais relevantes e polémicos do século passado. Ao longo de mais de três centenas de páginas, a autora procede a uma análise sistemática do percurso intelectual do filósofo alemão, sustentada por uma leitura exaustiva das fontes, as quais são por ela escalpelizadas na sua língua original. Deste modo, o leitor pode tomar contacto com a construção e fundação do itinerário de um pensamento que se individualiza daqueles que foram os seus impulsos primeiros, nomeadamente Kant e Husserl, e que se singulariza em torno de conceitos como Dasein e ipseidade, sendo ainda explicitado o agon com pensadores coevos como Dilthey. É neste contexto, onde diacronia e sincronia coincidem, que Mafalda de Faria Blanc situa os momentos mais polémicos da intervenção de Heidegger na polis, oferecendo uma análise que escapa às leituras redutoras que, não raro, surgem em torno deste pensador.
Em O Drama de Magalhães e a volta ao mundo sem querer – Seguido de – Um museu dos descobrimentos porque não?, Luís Filipe F. R. Thomaz, historiador de referência do período que nos habituámos a conhecer como Expansão portuguesa, procede a uma análise precisa e fundamentada do empreendimento levado a cabo por Fernão de Magalhães. Através de um registo que, sendo acessível ao grande público, é sempre pautado pelo rigor científico, o investigador esclarece, de uma forma que, salvo o aparecimento de novos dados, poderá ser considerada definitiva, questões como as que se prendem com a origem daquela figura e com a sua relação com as cortes portuguesa e castelhana, explicitando, desde logo, um percurso de vida indissociável da construção de um conhecimento náutico, os detalhes que envolvem as diferentes expedições nas quais participou e liderou, e, por fim, o modo como emerge a presença de Sebastião de Elcano. Trata-se de uma obra de referência e de síntese que desmonta eventuais equívocos em torno de Magalhães, assim contribuindo para um conhecimento mais preciso daquele tempo.
4. De Teresa Sousa de Almeida – porta-voz do Júri de Narrativa
Prémio de Narrativa, composto por Teresa Sousa de Almeida, Isabel Ponce de Leão e Rui Miguel Mesquita, decidiu, por unanimidade, premiar o romance de Julieta Monginho, Um Muro no Meio do Caminho, publicado pela Porto Editora. É um romance que nos fala dos refugiados que chegaram à Grécia, fugidos da guerra, das condições desumanas da sua vida nos campos, da sua dor indizível, do seu passado luminoso O júri do antes da tragédia, dos seus sonhos ou da ausência de perspectivas, em relação ao futuro. Ficamos a conhecer Amina, que deixa para trás o passado para amar Omid, Asmahn que apenas quer obedecer ao marido, a generosidade e a inocência dos voluntários, a realidade cruel dos campos de refugiados e a tortura de quem tem de os gerir, evitando o pior num cenário insuportável.
Narrado na primeira pessoa, por uma voluntária, de quem pouco ficamos a saber, este romance é um veemente testemunho sobre a sua relação com uma outra cultura, corporizada nas várias personagens que surgem na obra. Com uma pequena margem de manobra, num espaço reduzido e num tempo limitado, esse eu que escreve o livro tenta ouvir, compreender, ajudar, lutando contra os vários muros que se vão erguendo: a impotência para destruir a indiferença e a crueldade da Europa, a impossibilidade, tornada possível, de compreender outras línguas, outros gestos, outras opções de vida, outras ilusões. É uma ficção sobre a alteridade e a possibilidade comunicação, sobre a tensão entre a palavra e o silêncio, entre o que se esconde e o que se revela. Que a autora tenha conseguido realizar tudo isto sem ceder a qualquer espécie de sensacionalismo ou de sentimentalismo, revelando ao mesmo tempo um apurado sentido formal e erguendo uma singular arquitectura romanesca, impossível de confundir com alguma da ficção portuguesa contemporânea, foi um factor que, como é óbvio, influiu bastante na decisão deste júri.
Como demonstração desta singular arquitectura romanesca, Um Muro no Meio do Caminho reelabora aliás dois tópicos que têm sido frequentemente abordados na ficção contemporânea: a “amiga genial” (para recuperar o título do romance de Elena Ferrante) e o “manuscrito encontrado”. “Um caderno é o lugar onde a palavra mais se assemelha ao que a escreve, intimamente desenhada pela mão” (173); como acontece frequentemente com o “manuscrito encontrado”, os cadernos que Amina e Omid trocam entre si constituem um texto à margem do discurso quotidiano, um espaço diferente de todos os outros que, no entanto, não se limita à manutenção de uma certa distância face à realidade circundante. É uma diferença que interpela essa realidade, que contradiz os discursos que a tentam justificar e interrompe a sua tentação hegemónica, fazendo lembrar que há sempre outros discursos com os quais cada pessoa tenta descrever aquilo que sucede à sua volta – e, ao mesmo tempo, reclamando uma individualidade própria numa época marcada pela profusão sobreabundante de discursos descartáveis e indiferentes.
Além do mais, é uma diferença que preserva algo que, no universo diegético, sofre inúmeras ameaças: um espaço de intimidade. Poderíamos mesmo dizer que as “histórias dentro de histórias” (de Eleni, Ann, Dimitris…) que preenchem este romance são diferentes tentativas de erguer, no meio das mais atrozes circunstâncias, esse espaço de intimidade, de o “desenhar intimamente”. Tentativa, mas também pleno reconhecimento dos sucessivos constrangimentos sentidos pelas personagens; as palavras que Amina e Omid traçam nos seus cadernos, primeira forma de comunicação entre os dois amantes, falam-nos do poder da escrita e, ao mesmo tempo, dos seus limites para alterar uma realidade assustadora que se pode denunciar, testemunha de um tempo que infelizmente é o nosso.
No entanto, esta não é a palavra final de Um Muro no Meio do Caminho. Muito por culpa da Amina genial, que consegue entrar em Atenas depois de trocar de identidade com o jovem Saud, o final do romance revela também a esperança de uma irreversível transformação do mundo. Aliás, a troca de identidade é apenas uma de várias transfigurações que definem Amina; se ela configura, tal como muitas “amigas geniais” descritas na ficção mais recente, uma promessa de liberdade face a um mundo constrangedor, Um Muro no Meio do Caminho reserva-nos mais uma surpresa, pois Amina não é apenas a promessa indefinida de uma “vida verdadeira algures”: ela é também uma força transfiguradora por excelência, capaz de estruturar e conferir um sentido final – de uma forma que os valores de uma certa Europa não conseguem – às diversas atribulações e ignomínias sofridas pelos refugiados às portas do nosso continente. Fazendo evocar as palavras com que se apresentara a J. no início, Amina como que encerra um ciclo de carência e sofrimento e inaugura outro de reconhecimento e integração; torna-se dona da sua própria história.
Embora a oportunidade histórica de um romance como Um Muro no Meio do Caminho seja decerto um dos seus atributos, ele não seria, no entanto, razão suficiente para a atribuição deste prémio. Felizmente, juntam-se, a essa oportunidade histórica, muitos outras qualidades – das quais destacámos a original reelaboração de alguns tópicos frequentes na ficção contemporânea – que informam um entendimento bastante clarividente das implicações profundas da crise dos refugiados nos valores universalistas de que a Europa se reclama e na sua própria tradição literária e cultural. Sendo assim, Um Muro no Meio do Caminho não pode deixar de ser considerado uma parte integral da reflexão sobre esses valores e tradições – uma reflexão à qual o PEN (e a própria atribuição deste prémio) não é estranho.