Prémio PEN Clube Português de Poesia, referente a livros publicados em 2013

Gastão Cruz, Fogo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2013 e Golgona Anghel, Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, Assírio & Alvim, Lisboa, 2013]

O júri do Prémio PEN Clube Português de Poesia, composto por Fernando J. B. Martinho, João David Pinto Correia e Pedro Eiras, decidiu atribuir o prémio, por unanimidade, a Fogo, de Gastão Cruz, e a Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, de Golgona Anghel, dois livros publicados pela Assírio & Alvim.

Existe em Fogo uma narrativa de perda. Nas primeiras páginas, um corpo amado arde; mas do fogo desta cremação surgem redivivas as imagens do passado, perdido e recuperado, real outrora agora. Imagens: dias e noites, praias, quartos, peças de teatro, a partilha cúmplice do tempo. Breves e intensas memórias, quantas vezes concretíssimas: cafés ou bares, textos de Joe Orton, Tennessee Williams, Edward Bond, o tempo esgotado.

Gastão Cruz diz a presença destas memórias para dizer a perda. Cada imagem é também ameaça do desaparecimento, cada memória é também ausência, passado em cinzas, assombração. Por isso, Fogo subtilmente confunde vida e morte, em poemas como este:

 

Num café alta noite ao longe

te revi a uma

mesa difusamente iluminada

sob a onda do escuro que era a noite

em outubro

saímos e segui-te até falarmos

dobrada a esquina duma praça

transformada

talvez já na curva da estrada

Poema de memórias concretas – certa noite de Outubro, certo café e certa mesa –, mas também poema que cita a “curva da estrada” que, em Fernando Pessoa, diz a passagem para a morte. E assim a concretíssima “esquina duma praça” se torna significante de um lugar sem lugar; assim as palavras transfiguram o mundo, mas só porque o próprio mundo já é composto de mudança, e nele, como no devir segundo Heraclito, “nunca ninguém duas vezes entraria”.

Decerto o presente tem a intensa clareza da consciência e do sentido: meditando sobre a ruína do passado, o sujeito de Fogo pode compreender o que em tempos apenas viveu; mas esta condenação à consciência apenas revela a dor da perda. A mais extrema lucidez, a construção de um sentido através das palavras, aqui e agora, é também a mais amargurada experiência de pobreza: escassez mortal da memória.

Existe também perda em Como uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, de Golgona Anghel. Perda do valor das coisas, das coisas herdadas já perdidas, como aquele músico “Encontrado num contentor de rua, / sem cavalo e sem reino / (…) / quase cego, quase surdo, / (…) / ainda perseguido pela última garrafa de tinto”. Claro, este é um mundo cheio de espectaculares promessas, mundo do Chanel nº 5, dos óculos 3D, das férias na Disneylândia – mundo demasiado tardio, barroco, demasiado cheio de referências e publicidades, onde se pode apenas vender “uma boa história” e tentar resistir ao non sense do mercado generalizado.

Nenhum sujeito pode sobreviver incólume a um tal caos organizado. Assim termina um poema:

Nós, aqui, littlestranger,

degolamos pardais e fadas de porcelana.

Cobramos interesses à alegria

e vendemos suites com piscina na lua.

A batalha é nossa,

já alugámos as trincheiras,

mas custa tanto tirar os pijamas.

Eis a civilização e os seus descontentamentos: cobranças e vendas, sobrevivência, batalha, trincheiras paradoxalmente alugadas, e o saldo disfórico de um pijama que custa tanto a tirar. Como na eterna procrastinação de Álvaro de Campos, este sujeito plural de Golgona Anghel traça um violento e auto-irónico diagnóstico para tempos conformados.

Decerto existe ainda a cumplicidade com amigos, ou a ironia, ou outras frágeis formas de resistência, de sobrevivência. Existe o poema, mesmo se também o poema é como uma flor de plástico na montra de um talho, forma bela, mas artificial, kitsch, cúmplice de um mundo que é, no fundo, um matadouro.

Existe um mundo conformado e uma poesia que o descreve – mas descrever o mundo conformado não é pactuar com ele; é, pelo contrário, uma denúncia e um convite para o exercício da crítica. A trincheira, alugada ou aberta pela força da ironia, aguarda o leitor.

(Texto elaborado a partir da reunião do Júri, realizada em 5-11-2014, com redacção final de Pedro Eiras, lido por Fernando J. B. Martinho, na Sessão de Apresentação, em 18-12-2014)

Prémio PEN 2013 – Ensaio atribuído à obra de Diogo Ramada Curto Para que serve a História? (Tinta da China)

 Logo na introdução deste livro, pode ler-se um desdobrar do seu objectivo principal, que a pergunta Para que serve a História? formula: trata-se de, repetindo a questão de Marc Bloch (p.63), ir “contra os que pensam que a utilidade da história está nas lições que podem ser retiradas do passado” (p.13). Os textos aqui reunidos, produzidos em circunstâncias académicas ou destinados a crónicas regulares (Ler, Público, Expresso, Monde diplomatique), mostram uma exemplar capacidade de formular e desenvolver conceitos, ordenando-se os textos em cinco secções de clara organicidade e consistência, a contrariar a efemeridade da publicação em periódicos. Na verdade, o que se encontra são vectores confluentes de um pensamento sobre a História, que serve para “nos treinarmos a tratar o passado ou, mais propriamente, os processos de mudança como se estes fossem um país estrangeiro” em articulação com “o nosso próprio tempo” (p.13). Segundo Diogo Ramada Curto, o historiador investiga, faz e escreve a história como libertação do passado pelas operações do conhecimento, articuladas entre treino ou aprendizagem, ofício e prática quotidiana em privilegiada relação com fontes, desenvolvendo a pesquisa de arquivo em articulação com as ciências sociais.

Por assim conceber a disciplina e o ofício de historiador é que Ramada Curto pode emitir opiniões autorizadas e fundamentadas sobre as áreas abrangidas por estes ensaios, sejam elas o estado da historiografia portuguesa, ou as instituições em que trabalha o investigador em ciências sociais e em ciências humanas. Pode assim discorrer sobre a Biblioteca Nacional de Portugal (pp. 125-136 e passim), sobre as instituições de apoio à investigação e de avaliação desta (v.g., “Ciências sociais e história”, 2010). A história dos intelectuais estabelece nestes ensaios relevantes cruzamentos entre estudos de caso do século XX, mas também do século XX, formulando com pertinência relações entre a “liberdade de criação e de ensino” e a “liberdade individual, de ensino e de investigação”, lutando contra o “falso elitismo das universidades e centros de pesquisa” (p.66). Outras vias de reflexão debruçam-se sobre a voga das biografias (também) em Portugal, sobre a “história do presente” (pp.108-110), incluindo o papel da universidade (pp.115-120) e da instituição livro (tomando firme posição sobre a papel dos professores do ensino secundário e sobre os sistemas de avaliação das universidades). Apresenta ainda a perspectiva do historiador sobre Camilo Pessanha (a propósito da edição por Daniel Pires da Correspondência, dedicatórias e outros textos, 212, pp.155-161), em considerações muito enriquecedoras para quem trabalha a fundamental obra de Pessanha pelo lado dos estudos literários. O mesmo sucede com a leitura crítica dos ensaios de teor político, sobre o iberismo e o “pensamento imperial”, de Fernando Pessoa (pp.162-169).

Analisadas as obras de ensaio publicadas em 2013, o júri do Prémio PEN 2013 – Ensaio entendeu atribuir o galardão a este Para que serve a História?, de Diogo Ramada Curto, editado pela Tinta da China, por neste volume reconhecer o mais nobre e mais profícuo sentido do ensaio: no desafiante sentido herdado de Montaigne, aqui se questiona o humano na sua face de hoje – que é como quem diz, sem tempo porque fundindo todos os tempos na reflexão séria, rigorosa e aberta que entendemos ser a deste livro.

Maria João Cantinho, Nuno Crespo, Paula Morão

Prémio PEN de Narrativa

 É a seguinte a fundamentação do júri para a atribuição ex-aequo do Prémio PEN de Narrativa deste ano a Ara, de Ana Luísa Amaral e As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral.

 Em Ara, o seu primeiro romance, a poeta, ensaísta e professora universitária Ana Luísa Amaral rasga um universo de palavra acutilante e solta. Rompe convenções aparentemente ultrapassadas e irrompe no universo da ficção, ampliando-o. Segundo Maria Velho da Costa: «Assente na pedra do lar um prisma multifacetado e translúcido: o amor único, a palavra. A deriva do arado sobre a ara.»

Neste romance, a experiência do trabalho da matéria verbal é associada à experiência do investimento numa forma de amor entre pessoas do mesmo sexo. Daí resulta a composição de uma teia complexa de consonâncias e dissonâncias. Com um registo ambivalente entre a narrativa ficcional e o género poético, alternando prosa confessional, diálogo a duas vozes e poesia, Ara é uma elaboração original sobre as possibilidades da prosa e os respectivos limites, ou as suas impossibilidades intrínsecas. Esta é uma prosa que procura um corpo que a habite, «ao menos o sangue necessário» e linhas de vida que a alimentem, uma nova litania e uma «nova voz de gente». Uma prosa que se constrói a pulso e que, ao desafiar tabus, antecipa a respectiva ultrapassagem na sua própria respiração e cria uma segunda pele, uma nova e liberta naturalidade.

Desafiando convenções e classificações, destacam-se em Ara, de Ana Luísa Amaral, a selectividade da linguagem e a lei de atracção que reorganiza em índice o mosaico das imagens vividas.

 Em As Primeiras Coisas, o crítico literário, tradutor e assessor de comunicação editorial Bruno Vieira Amaral surpreende pela maturidade estética, invulgar numa primeira obra. Com particular originalidade, faz surgir uma personagem colectiva marcante, o Bairro Amélia. Cria-a a partir de um inventário memorialista elaborado pelo protagonista-narrador do romance, de regresso a esse «bairro meteorito onde confluem vários acidentes históricos» e onde cresceu: um bairro social situado na Margem Sul do Tejo. Os registos deste narrador (com traços autobiográficos) são crus e ironicamente amargos. A reabilitação ambígua, realista e efabulatória, que ele faz do Bairro Amélia é cimentada por uma estrutura não-convencional (prólogo longo, 86 fichas/capítulos, dezenas de notas de rodapé informativas ou meta-literárias). A justaposição de registos, personagens, dados e acontecimentos testa as potencialidades estilísticas do autor. Assim, Bruno Vieira do Amaral dá voz, única, a um espaço e a figuras inquietantes. Figuras que emergem das rotinas de um quotidiano socialmente ignorado, fragmentárias na sua forma, mas completas na sua humanidade.

Teresa Salema, Filipa Melo, Vítor Viçoso

Prémio PEN Clube Português de Primeira Obra

Ex-aequo: Rosa Oliveira, Cinza, Tinta-da-China, e João Pedro Cachopo, Verdade e Enigma, Ensaio sobre o Pensamento Estético de Adorno, da editora Vendaval

É com grande satisfação que o júri do Prémio Primeira Obra do Pen Clube Português, coordenado pelos presidentes dos júris que tiveram em conta as recomendações de todos os seus membros, decidiu atribuir este Prémio a duas obras em ex aequo, a saber, ao livro de poesia de Rosa Oliveira, Cinzas, da editora Tinta da China, e à obra de João Pedro Cachopo, Verdade e Enigma, Ensaio sobre o Pensamento Estético de Adorno, da editora Vendaval. O júri decidiu que estas obras reuniam ambas as condições essenciais para a atribuição do prémio, pela sua excelência, no que respeita a vários aspectos que devem ser considerados diferenciadamente, uma vez que a natureza dos géneros o exige.

Primeira obra de poesia de Rosa Oliveira, Cinza desafia o seu leitor para plurais e surpreendentes jogos de linguagem: cruzando homenagens a poetas (como Ruy Belo, EmilyDickinson ou TedHughes), a filosofia, a astrofísica, mas também casas em Espinho, o Museu Gulbenkian, um irónico conselho (“não bebam moëtetchandon de estômago vazio”), a retórica das confissões, a encenação dos desabafos, o pequeno e o grande – este livro inventa modos de interrogar o mundo, ou talvez a sua cinza.

Trata-se de avaliar a instabilidade de todas as coisas – das esperanças políticas traídas até à formação do universo. E se “nos longos meses de verão a begónia subiu pelo vidro / agora verde / entretanto gente nasceu, morreu gente e ninguém foi salvo”. Ninguém é salvo, se tudo é instável; se “foi possível [uma] longa marcha para a mediania”. Mas em Rosa Oliveira esta forma de visão melancólica das coisas contrasta com ironias, protestos, interrogações. Cinza não é apenas o juízo pessoal de um mundo, mas também a procura de uma linguagem, ou de várias. E se o mundo parece insolúvel, Rosa Oliveira escreve: “algures na infância / percebera que é possível resolver um problema / demonstrando que não tem solução”.

Como escreve Fernando J. B. Martinho, Rosa Oliveira, que se situa “cronologicamente mais perto dos poetas dos anos 80 do século passado, mas [vem], com o seu livro de estreia, Cinza, uma das mais sérias revelações dos últimos anos, muito ao encontro do amargo humor e da desenvoltura irónica dos seus pares mais novos, uns e outros dando expressão a um mal-estar que diz de inúmeros modos que ‘parece não haver alternativa à vida’” (Relâmpago, nº 33).

(Texto elaborado a partir da reunião do Júri realizada em 5-11-2014, com redacção final de Pedro Eiras e citação de F.J.B. Martinho, lido por João David Pinto Correia)

 

No que respeita à obra de João Pedro Cachopo, Verdade e Enigma, Ensaio sobre o Pensamento Estético de Adorno, será de ressaltar a forma rigorosa como o autor demonstra a singularidade do pensamento de Adorno sobre a arte, não apenas realçando os aspectos mais centrais do pensamento do filósofo, mas também pelo modo ágil como estabelece uma importante síntese dos diálogos, das continuidades e das rupturas que a obra de Adorno protagoniza com os temas e autores. Para Cachopo, a estética de Adorno não assenta no pressuposto mais tradicional e convencional de pensar a verdade da arte, mas passa sobretudo, por uma proposta de uma figura enigmática do teor de verdade das obras de arte, no sentido de uma resistência à sua interpretação.

É precisamente deste aspecto que parte o autor, auscultando o pensamento de Adorno e ao tomar como central o “carácter enigmático” das obras de arte. Por essa razão, a obra deste jovem autor comporta um risco ou um desafio, o qual consiste na captação e na exploração crítica do “teor de verdade” das obras de arte. E que a verdade da arte seja, para Adorno, como nos mostra João Pedro Cachopo, inseparável do seu potencial crítico e da sua negatividade histórica e social, isso constitui uma das características fundamentais e interessantes do pensamento adorniano.

Pensar Adorno na sua actualidade, tal como o autor aqui nos propõe, numa perspectiva, não apenas estética, mas também política, eis o que consubstancia o lado mais estimulante para o leitor de Adorno. Trata-se, assim, de pensar criticamente e dialogar com a possibilidade da crítica de arte, nos dias que correm, de forma urgente e não se limitando a uma forma mais ou menos inócua de escrever sobre a estética, o belo e o sublime. A necessidade do questionamento e de um posicionamento reflexivo sobre o que é o “olhar estético” e sobre uma estética do enigmático, eis o que atravessa a obra de Adorno, sendo visível no modo como o filósofo se dedicou à obra de vários autores como Hölderlin, Mahler, Beethoven, Celan, Kafka, Beckett, entre muitos outros.

O modo excepcional como João Pedro Cachopo convoca estes problemas, tanto pelo seu rigor e ineditismo, como pela sua escrita sólida e prolífica, vem preencher uma lacuna sobre o pensamento do filósofo, pois não há em Portugal nenhuma obra tão significativa como esta. Por outro lado, a leitura de Cachopo sobre o pensamento de Adorno também se distingue pelo seu carácter heterodoxo, afastando-se de visões simplistas e redutoras do seu pensamento.

Oferecendo à investigação portuguesa uma obra referencial, o autor defende essencialmente a ideia de um potencial crítico da obra de arte, em constraste com uma ideia de arte como consolação. Este modo crítico de pensar a arte constitui também a mais fértil forma, no sentido em que convoca o seu leitor para uma abertura do pensamento estético, combatendo determinados preconceitos que contribuem para um certo olhar enviesado sobre a arte e em que o seu poder político e subversivo se desvanece, dando lugar a uma visão mais redutora da estética.

Por isso, termino com uma citação de João Pedro Cachopo, exprimindo o modo como esse potencial crítico da obra de arte se articula tão intimamente como o seu carácter enigmático: “A arte seria crítica não só na medida que afirma o ainda não é, ou na medida em que — para evitar o risco de consolar — nega o que é e já foi, mas na medida em que actua criticamente sobre as condições racionais que determinam o que pode ser. Ela intervém, em virtude do seu carácter enigmático  — em virtude, portanto, do que nela permanece irreconhecível e resiste à compreensão —, no campo em que se decide a ‘possibilidade do impossível’ ou, melhor dito, em que se problematiza a fronteira entre ‘possível’ e ‘impossível’, sendo aí, nos termos de uma crítica em acto das condições de inteligibilidade e transformação do real, que se joga a efectiva concretização do seu potencial crítico”.

Nuno Crespo e Maria João Cantinho