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Teve lugar no dia 29 de Novembro de 2016 a sessão de entrega dos prémios PEN (patrocinados pela DGLAB) na Sociedade Portuguesa de Autores a Armando Silva Carvalho (A Sombra do Mar, Assírio & Alvim), na modalidade de Poesia, Marinela Freitas (Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge: Quantas Faces?, Afrontamento) e Paulo de Medeiros (O Silêncio das Sereias: Ensaio sobre o Livro do Desassossego, Tinta-da-China), na modalidade de Ensaio, e Mário Lúcio de Souza (Biografia do Língua, Dom Quixote). Não houve a assinalar uma Primeira Obra premiável.

Com a presença de Luís Filipe Castro Mendes, Ministro da Cultura, e dos Presidentes da SPA e do PEN, José-Jorge Letria e Teresa Salema, a sessão contou ainda com as intervenções de membros dos respectivos júris.

Intervenção da Presidente do PEN:

A estreita margem da literatura

   Numa conversa havida há alguns anos com Teolinda Gersão e outros colegas, constatámos que a margem de que dispõe o escritor, nos países em que a liberdade de expressão está garantida pela lei fundamental, acaba quase sempre por ser tão estreita como a crista de uma cadeia de montanhas com precipícios dos dois lados: ou os registos mainstream da literatura de aeroporto, ou aquele silêncio que tinha, no dealbar do século XX, sido a opção de um fictício Lord Chandos saído da pena de Hugo von Hofmannsthal.

   Na sua 37ª edição, os júris dos prémios PEN principiam por confrontar-se com uma pluralidade de escritas que nos deixam perplexos e pela qual nunca agradeceremos suficientemente à generosidade das editoras. Isto porque quando os caminhos da avaliação se estreitam, verificamos que quase todas elas produziram obras de destaque, a que a escassez de uma short list nunca pode fazer jus. E só nos furtamos, enquanto júri, à ansiedade da escolha final porque sabemos que esta não pode ser senão o resultado de um compromisso. São raros, embora existam, os momentos altos de um consenso unânime.

   Trata-se aqui, parafraseando a ironia brechtiana do pós-guerra numa sociedade que se dizia socialista, dos “esforços das planícies”. Algo semelhante se passa nas democracias e na era digital. Mas será que poderemos responsabilizar a actual pluralidade dos meios de divulgação, a transformação contemporânea de muitos encontros literários em sedutoras moedas de troca de ludicidade frequentemente equívoca? Teremos direito a lamentar, obviamente não tanto os anos de censura em que se escrevia com letras cautelosas em ar rarefeito, mas aqueles anos que se seguiram ao inevitável frenesi de leituras políticas e em que as horas passadas em livrarias, a rede viva das tertúlias ainda sustentáveis, a opinião sobre um livro, tudo isso fazia parte do nosso respirar quotidiano?

   Foi nesses anos que nasceram os prémios PEN, de certo modo a contrapêlo das práticas seguidas por outros Centros PEN por esse mundo fora. No final dos anos 70, o PEN teve a cabo uma tarefa intensificada, nomeadamente de consagrar a liberdade de criação como forma suprema da liberdade de expressão – ou seja, de uma expressão liberta de amarras censórias ou de ameaças de confiscação ou outro tipo de punição mais grave. Sim, estou a pensar no caso das Novas Cartas Portuguesas e deveríamos interrogar-nos até que ponto elas terão contribuído para abalar o apodrecido edifício do regime em termos de contestação irónico-satírica do discurso oficial. Mas ao longo destas quase quatro décadas, os caminhos da liberdade de expressão e criação, consignada na Carta do PEN Internacional, não deixaram de ser por vezes labirínticos. Por vezes, felizmente poucas, a liberdade de decisão dos júris foi contestada por alguns e defendida sempre por aqueles que nunca perdem de vista a pluralidade de gostos e de posições. E as decisões finais, por polémicas que sejam, sempre terão de ser defendidos aqui neste fórum onde nos encontramos. E tendo sempre em vista a já estreita selecção das short lists, a escolha final tem assim um carácter de vintage que muito me apraz sublinhar para os prémios deste ano, não só porque acompanhei mais de perto ainda o trabalho dos júris em que estive também envolvida. Tão pouco agradeceremos o suficiente ao Ministério da Cultura e à DGLAB pela confiança no nosso trabalho.

   Porém não percamos de vista que continua a tratar-se de “esforços das planícies”. Esta cadeira vazia lembra-nos escritores encarcerados e não só em continentes longínquos. Numa carta escrita à sua colega turca Asli Erdogan, a cumprir uma pena na prisão de Bakirköy, a escritora alemã Nina George lamenta as perseguições de que têm sido alvo não só os reais mas também alegados, potenciais ou putativos opositores ao regime autocrático do presidente Erdogan (a coincidência do apelido é acidental). As tendências de restrição da liberdade de expressão e movimento, em nome de uma presumível segurança, espreitam por todo o mundo e também na memória histórica de muitos de nós. Nina George termina evocando o dia em que ambas se encontrarão para saírem ao sol, conversarem, jantarem juntas. Tudo o que parece muito simples e para nós dado como garantido, mas que se conquista e se mantém graças à tenacidade de quem nunca deixa de escrever, seja contra a repressão, seja contra a vulgaridade, seja contra o silêncio.

Teresa Salema

Sobre o Prémio de Poesia:

A SOMBRA DO MAR DE ARMANDO SILVA CARVALHO

 A sombra do mar, último livro publicado por Armando Silva Carvalho, contém um poema intitulado «À sombra do mar», no qual se discorre poeticamente sobre alguns heterónimos de Pessoa e onde são referidos, de fugida, Camões, o Padre António Vieira e Cesário Verde, este último − sabêmo-lo − referência antiga do poeta que se estreou em livro com Lírica Consumível, e que, tal como Cesário, andou durante muito tempo a medir as distâncias entre a cidade e o campo. As duas sombras parecem apontar assim para mares diversos, mas contudo íntimamente ligados. No poema referido, a vastidão e força serão as da própria poesia, lamentando o poeta que os textos enxugados dos escritores mencionados não sejam alimento comum de um povo que «não soube ler na sua própria língua». O sentimento ressentido ou o ressentimento sentido deste poeta que se qualificou sempre de acidental é uma tonalidade afectiva da sua poesia, sempre firmemente refractária a enxúndias poéticas, à goma elástica de certos versos que por vezes nos assolam (e daí o adjectivo «enxugado»), usado ao falar de alguns dos seus confrades mais notáveis. O mar do título parece ter uma dimensão metafísica, sugerindo o poderoso ilimitado. A poesia de Armando Silva Carvalho foi sempre uma rejeição do supérfluo, das modas e bordados poéticos com seus rendilhados enfunados e pletóricos. E se já era assim em jovem quando escrevia: «Deitado no meu corpo/disfarço o mais que posso/o artifício que encanta», dando-nos um vislumbre da importância que as coisas em geral, mas particularmente a coisa-corpo que nos arrasta pelo mundo, mesmo o mais espiritual, têm na nossa vida, gerando por vezes «funestas alquimias» que nos são decisivas. Se já nessa altura, de florescência incontida, cultivava a magreza das palavras, à sombra em parte da poesia 61 e dos poetas seus amigos que as exercitavam na corda bamba da expressão essencial desses tempos, e sobretudo de João Cabral de Melo Neto, acontecer. A velhice e a decadência física que geralmente a acompanha não tem sido tema de eleição da poesia portuguesa, apesar de algumas obras fundamentais que tratam desse tema, como são os casos de Limite de Idade de Vitorino Nemésio e de Terceira Idade de Mário Dionísio. Mas o tom de A sombra do Mar não é desvalorizador, como no poeta açoreano, jocoso e auto-irónico, nem tem a ponderação discursiva do autor de Solicitações e Emboscadas. Aqui o sentimento é o de uma angústia de idades sobrepostas, de aceitação estóica, de uma corajosa mas lamentativa confrontação, sabendo-se que a sombra vai progredir sempre do mesmo modo, como o rugido imparável e inevitável do mar que se contempla com prostração e recolhimento, mas com essa espécie de ataraxia que a contemplação provoca em resultado do sentimento de recolhimento e identificação.

Se é verdade que ao longo de uma obra extensa como a deste escritor, podemos encontrar momentos de diferenciação, de alguma clivagem, em livros como Alexandre Bissexto e, sobretudo em Canis Dei, com a acentuação de preocupações que, à falta de melhor, podemos classificar como espirituais, e mais recentemente a partir de De Amore, livro que abre caminho a A sombra do mar, em que predomina uma atmosfera crepuscular, mas sóbria e contida como sempre por uma ironia ácida e, por vezes, mesmo violenta, não é menos verdade que a poesia de Armando Silva Carvalho manteve sempre o registo da distanciação eloquente, traduzida por uma acidez enegrecida e densa, por vezes violenta, que frequentemente se transforma em auto-ironia, sem qualquer comiseração. Lemos nos poemas deste livro, a consciência dorida da inevitabilidade do envelhecimento: «A verdade é só uma, o que foste ontem/já não te conhece» (…) A idade abafou todo o prodígio, /palmo a palmo, vou medindo o esplendor em dissolução. Palavra por palavra». Há também aqui algo de premonitório, como se alguns poemas deste livro fossem o primeiro encontro com um tempo que já começa mas que ainda não é completamente, uma espécie de compte rendu prévio do que se sabe inevitavelmente vir a outra grande referência, poeta da secura e da dureza, muito mais o faz na actual situação da sua vida em que alternadamente contempla o mar da poesia, sabendo que a sombra do tal outro mar de que falei, lhe enegrece os dias e o deixa face ao inelutável «peso das fronteiras», para usar o sugestivo título de um dos seus livros.

O mar deste livro, que cintila nos textos as suas diversas acepções e que é sempre metáfora do que é essencial para o homem (o amor, a morte, o tempo, o júbilo, o sonho, Deus), é também o mar concreto de uma longa vivência nas suas margens. Muitos destes poemas foram escritos junto às escarpas do mar de Peniche; e no inverno, para evitar as suas fúrias, por vezes dentro de um carro, não já o nervoso e impulsivo «amante japonês» de outros tempos, mas o abrigo mais caseiro de um tempo contemplativo e de grandes (e pequenos) balanços. Estamos já longe, felizmente, desse outro mar de Peniche, horizonte da fortaleza, paisagem de cativeiro árduo e persistente que lemos em Os ovos de oiro «onde os peixes de atiram/contra os barcos/ e as grutas dos rochedos/nada acoitam.», mas continuamos no mar que de forma mais intensa e directa ou apenas discretamente, sempre assombrou o imaginário de Armando Silva Carvalho. A sua voz persiste, faz-se ouvir, clamando das profundezas, a invadir um quotidiano discreto, de hábitos martelados, trémulos, de uma aprendizagem do nada ou do muito pouco, quase monástico. Fala-se, neste livro, da solidão negociada com a morte, ouve-se nele a sua voz monocórdica, por vezes exaltada, mas sempre intempestiva, como a dos loucos.

José Manuel de Vasconcelos

Gostaria de felicitar vivamente Armando Silva Carvalho não apenas por este livro, A Sombra do Mar, agora muito justamente premiado, mas também por toda a sua obra; pela criação de uma poética muito singular, na qual a ironia sustenta uma atitude analítica e crítica que Armando Silva Carvalho soube articular com o intimismo, com a expressão da experiência sentimental e com a leitura da tradição poética, que lhe suscitou um diálogo criador. A Sombra do Mar representa um ponto muito alto numa poética sempre marcada pela coragem de ver – e de se ver a si mesmo – sem concessões ou facilitismos. Trata-se de um livro lúcido, às vezes duro, mas também terno e poderoso porque nos mostra desabridamente a nossa condição frágil, precária; um livro que nos confronta com a pobreza essencial da condição que é a nossa, inevitavelmente condenados de um modo ou de outro à perda e ao nada. Mas, por isso mesmo, este é também um livro que nos deixa uma profunda sensação de autenticidade. Foi Montaigne quem disse: “eu não pinto o ser, pinto o passar”.  A sensação que nos deixa o livro de Armando Silva Carvalho é que nele se “pintam” rigorosamente as duas coisas.

Rosa Maria Martelo

Acerca do prémio de Ensaio

         Cumpre-me, na qualidade de porta-voz do Júri do Prémio de Ensaio PEN Clube 2016 constituído por Teresa Salema, presidente do PEN Clube Português, por João David Pinto Correia e por mim própria, dizer aqui algumas breves palavras e, desde logo, felicitar os vencedores ex-aequo, por unanimidade, deste prémio: Paulo de Medeiros com O Silêncio das Sereias: ensaio sobre o “Livro do Desassossego” (Tinta-da-China) e Marinela Freitas com o ensaio Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge: Quantas faces?(Afrontamento).

         E de os felicitar redobradamente, tendo em conta o ano de excepcional qualidade ensaística patente na short list que oportunamente o PEN Club divulgou e da qual faziam parte ensaios de vulto como os de António Marques A filosofia e o Mal. Banalidade e  radicalidade do mal de Hannah Arendt a Kant; Pedro Eiras, Platão no Rolls-Royce: Ensaio sobre a Literatura e a Técnica e Ricardo Gil Soeiro, A Sabedoria da Incerteza: Imaginação Literária e Poética da Obrigação (Broch, Coetzee, Lispector, Llansol e Vila-Matas).

         Começaria talvez por dizer que a atribuição deste prémio ex-aequo constituiu um desses encontros improváveis entre dois ensaios distintos que, aproximando metodologias, estéticas, tempos e espaços diversos, estabelecem um diálogo a várias vozes, não menos imprevisto mas surpreendentemente iluminador. Um diálogo que, a partir de três grandes autores representativos, procura problematizar a essência da escrita e o papel do escritor na modernidade, considerada desde as origens oitocentistas à sua expressão mais “tardia”, quero dizer, desde as origens ao tempo presente que é o nosso. Resgatando estes autores da sombra da discrição que, em maior ou menor grau, os envolve (em particular, Emily Dickinson e o enigma da sua auto-reclusão), procurando captar as múltiplas faces de rostos que permanecem esquivos, fazendo incidir sobre eles variações de luz ou de perspectiva, surpreendendo-os, interrogando-os, na tentativa de uma leitura nova ou renovada, mas em qualquer dos casos, desafiante.

 Naturalmente, entende-se aqui o ensaio quer na acepção original de Montaigne, enquanto escrita de si, quer na acepção benjaminiana e adorniana enquanto forma aberta, instável, escrita a bordo dos dias e dos saberes, numa aproximação progressiva e desassossegada do objecto que, neste caso, é tanto o enigma da escrita de Bernardo Soares/Pessoa, de Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge quanto a dos dois ensaístas que a si mesmo se buscam e se ensaiam no objecto de investigação, nas sucessivas aproximações, hesitações, modulações e fulgurações do pensamento que perseguem, nas conexões e imagens que entretecem o gesto de escrever. Ousando pensar-se, no gesto de ir rasgando caminho por entre as ruínas do que já foi pensado.

Se estas foram razões determinantes para a escolha do Júri, convém sublinhar que nesta decisão pesou igualmente o facto de as duas obras vencedoras terem sido concebidas de raiz como um ensaio e não como uma recolha de textos dispersos ou dissertação em torno de um tema, mesmo se em ambos os casos a escrita surge profundamente ancorada às circunstâncias da vida académica e às exigências do rigor científico: no caso de Paulo de Medeiros, trata-se de um ensaio editado em primeira mão como obra original e, no de Marinela Freitas, trata-se de uma tese de doutoramento que foi refundida para publicação, como a alteração do título indicia.

              É, de alguma forma isso mesmo que afirma Paulo de Medeiros na “Nota Prévia” ao sublinhar que a escrita deste ensaio é o resultado de um longo processo de questionamento, um meio de encontrar respostas para as diversas perguntas de índole teórica que durante vários anos o desassossegaram no âmbito da leccionação de um seminário de pós-graduação sobre o Livro do Desassossego. Neste sentido, diz o ensaísta, ter-se-lhe tornado claro “que só através da escrita um pouco mais sistemática e desenvolvida poderia encontrar algumas respostas possíveis. O Livro do Desassossego é, antes de mais, um anti-livro, que coloca em questão, de forma absoluta e radical, muitos dos pressupostos da literatura. E fá-lo, antes de mais, através da técnica do fragmento. Seria tentador então, ao escrever sobre o Livro do Desassossego, fazê-lo igualmente através de fragmentos. (…) Daí a escolha do ensaio como forma mais apropriada de responder a alguns dos desafios colocados pelo texto de Pessoa; um ensaio fragmentado em pequenos ensaios, cada um dirigido a um aspecto individual do texto”.

         Longe de ser mais um livro a acrescentar à vasta bibliografia pessoana, O Silêncio das Sereias representa assim, em primeiro lugar, o gesto de ousadia que caracteriza todo o ensaio. Uma tentativa de abordagem daquele que é porventura o texto mais enigmático e complexo de Pessoa (desde logo no que diz respeito a questões de autoria, de alteridade, de heteronímia, de textualidade e de representação), mas também um admirável esforço de síntese, tendo em conta a torrente da bibliografia pessoana e a actualizada rede de relações que estabelece com diversos autores centrais da modernidade, desde logo com Kafka que inspirou o título deste ensaio. Uma tentativa de abordagem que recorre à mesma “técnica” utilizada no Livro do Desassossego, procurando cercá-lo através da rede da escrita, de um conjunto de pormenores significantes, de imagens-tema e de fragmentos que se oferecem ao leitor como única bússola possível para navegar neste diário do acaso. E dessa forma iluminando, aqui e ali deixando entrever o rosto de Bernardo Soares de quem Pessoa disse um dia ser o seu “semi-heterónimo” mas que a si próprio se define como sendo “ninguém” ou “nulo”, uma “vida lida”. Navegação sem fim que, tal como no inacabamento do Livro do Desassossego, se configura como inquietação infinita, um permanente desassossego que, em última instância, apenas o canto ou o silêncio das sereias da escrita pode expressar e, porventura, apaziguar. O Silêncio das Sereias é um ensaio de navegação, a vários títulos, notável.

         Se a sedução das palavras e os seus perigos, mas também a imaginação e o sonho constituem no Livro do Desassossego uma forma de resistência à mediocridade e aos tempos de indigência que são hoje os nossos, essa resistência manifesta-se igualmente, ainda que por vias distintas, na escrita de Emily Dickinson e de Luiza Neto Jorge que o ensaio de Marinela Freitas procura acompanhar e desmontar. Trata-se igualmente de um ensaio notável, até pela dificuldade acrescida de um duplo objecto de reflexão, pela profundidade crítica de que se reveste, pela escolha de duas grandes poetas da transgressão e da opacidade da linguagem. Um ensaio que, como sublinham as prefaciadoras Ana Luísa Amaral e Rosa Martelo, é, em certo sentido, pioneiro ao procurar conciliar uma visão prospectiva e uma visão ou visitação retrospectiva da modernidade. É essa perspectiva movente, em constante oscilação ou deslocação, que a forma do ensaio traduz construindo-se como permanente interrogação, abrindo caminhos para um “abismo de possibilidades” mais do que para um conjunto de respostas, justamente um aspecto que o júri não poderia deixar de valorizar.

         Neste sentido, desenhando-se como tentativa de desvendamento do rosto de duas mulheres poetas, de invenção ou reconstrução de um diálogo de faces que se olham através do espelho do Atlântico, do biombo da distância temporal e espacial, o ensaio de Marinela Freitas procura uma leitura do mundo moderno a partir do lugar de uma fala feminina e do seu gesto primitivo, genesíaco, de desnomeação do mundo, de (re)invenção da palavra e da língua que lhe dá forma e o diz. Gesto simultaneamente transgressor e criador que tanto Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge, convergindo ou divergindo no desenho, souberam, levar a cabo e que Marinela procura interrogar e dar a ver.

         Pelo contributo precioso que Paulo de Medeiros e Marinela Freitas deram com estas obras ao prestígio do ensaio como género, pelo rasgar de novos caminhos de reflexão e de leitura que as suas obras representam, pela forma como interpelam o leitor, cumpre-me apresentar, em nome do Júri do Prémio de Ensaio PEN Clube, as maiores felicitações a ambos e desejar que, para além do reconhecimento do seu trabalho, o Prémio que hoje aqui vão receber possa constituir um estímulo para a escrita de novos ensaios, um desafio para novas e ousadas navegações.

Isabel Cristina Pinto Mateus

Acerca do Prémio de Narrativa:

O júri do Prémio de Narrativa do PEN Clube Português regozija-se pela decisão de atribuição do Prémio à obra do escritor Mário Lúcio Sousa, felicitando o autor pelo seu livro notável, bem como a sua editora (e os seus representantes). Agradecemos também aos presentes, ao representante da DGLAB e ao senhor Ministro da Cultura, que muito nos honra com a sua presença.

Várias são as razões que motivaram a nossa escolha, entre várias obras de grande qualidade, como já publicitámos na shortlist. Trata-se de um romance tocante e avassalador, que mergulha a fundo nas cicatrizes da história comum dos nossos povos e do colonialismo. Por outro lado, a sua escrita fluída, ágil e muito inovadora, a vários níveis, recupera, de uma forma muito feliz, uma tradição oral que se encontra desvalorizada na literatura actual e que importa recuperar. Biografia do Língua é também uma homenagem ao poder de encantamento da linguagem, que se revela aqui muito imagética e cheia de recursos, em que Mário Lúcio Sousa nos mostra o poder da liberdade e que é ao mesmo tempo o da palavra, e, antes de tudo,a expressão da máxima potência da linguagem.

Mediante o dispositivo narrativo da mise-en-abîme, o autor cria o efeito de conto, através das histórias de um condenado à morte que, perante o pelotão de fuzilamento, pede um último desejo, o de contar a história de um escravo fugido. E,à medida que nos conta a história desse escravo fabuloso, o Língua, as armas do inimigo vão-se acanhando, a guarda vai baixando e a paz vai-se instalando, dando assim lugar a um estado inaugural da língua e do seu poder simbólico de libertação, de fundador da comunidade. Tal como Xerazade na sua astúcia, ao contar as suas histórias, noite após noite, ao rei Shariar da Pérsia, também a narração do condenado contém a possibilidade da sua salvação, adiando o momento da morte.

Como reconheceu o próprio autor, na “Pré-história”, o capítulo que antecede o romance, «Construir uma narrativa com base no tempo das histórias, e não no tempo da história, é a linguagem do livro. Quem ordena o tempo não é o relógio, mas a língua». (p. 12). É este o excelso poder da literatura, o de fazer saltar as malhas do espaço e do tempo, nesse exercício de reinvenção e de arte de contar. Há neste livro um embalo antigo e ancestral que parece nascer da própria magia da música, nesse universo que é também o do autor do romance, onde a linguagem encontra a sua energia vibrante e intensa. Matéria ou magma de que são feitos os sonhos de um povo, que fundam o seu tempo e o seu lugar, esse lugar «maravilhoso» que é, não apenas físico, mas também ideal, a Falésia é acomunidade, o reino dentro de um reino, que nasce a partir da morte, e cresce a partir da história que é contada e da onomástica que se vai construindo, como uma babel apaziguada pela língua reinventada, que se torna comum, benigna, salvadora e vital. Trata-se da história de um povo, da história da escravatura, de uma distopia que se torna afinal numa utopia, real (afinal, na ficção é possível) e essa transfiguração-salvação chega-nos precisamente dos efeitos mágicos da linguagem, essa que falamos e nos molda, mas também a que exerce sobre nós um encantamento. Nasce da língua que usa um condenado à morte, que perpetua a vida de uma comunidade (e de si próprio) no gesto de narrar, perpetuando uma tradição e pagando uma dívida que tem para com a memória colectiva.

A língua – e o Língua, nome do protagonista – é nossa. Tal como o são os filhos comunitários da Falésia. A nossa língua,tal como os meninos da falésia «que mamam em indistinta teta», «brincam na soleira de qualquer casa», «comem onde lhes é oferecido», «dormem onde cabeceiam», «vestem a roupa de qualquer um». É isto a nossa língua, entretecida com a comunidade e a sua experiência.

Porém, as personagens de Mário Lúcio, os falesianos, não querem fazer história: eles «querem ouvir história». Eles vivem dentro de uma história, tal como todos nós, vivem na «história nossa de cada dia», só que não nos damos conta.  Porque, há ventos e tempestades, há ínvios caminhos que nos afastam. E qualquer história é habitável. Basta saber entrar lá dentro, talvez escutá-la. E Mário Lúcio soube-o.

«É isto a liberdade?», pergunta-nos o narrador do livro e responde : «Há qualquer coisa de inseparável entre a liberdade e a solidão» – «o silêncio para quem escuta é uma multidão sábia». Mas também, continua, há qualquer coisa de parecido entre a liberdade e amor, pois a «Solidão ajuda a perceber a liberdade, mas é em companhia que a gente a saboreia».

Este é um mundo alternativo, um proto-lugar ou um espaço simbólico onde as pessoas se esqueceram da frieza das leis, dos impostos, das queixas, dos lamentos, das contas – só interessa a história e as pessoas só se salvam pela história contada por um fuzilado diferido. Contar é aqui sinónimo de respirar, porque quando esta personagem, diante de um pelotão de fuzilamento, parar de contar, a história e o livro acabarão. E mata-se a personagem, a não ser que o verbo matar tenha morrido também. E deixe de ser conjugado. Num universo mágico em que a personagem é metáfora, sonho e canto, anunciador da comunidade humana e do poder restaurador e libertador da Língua. A bem de todos os «falesianos» que somos.

Ana Margarida de Carvalho, Vítor Viçoso e Maria João Cantinho

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José-Jorge Letria, Maria João Cantinho, Luís Filipe Castro Mendes, António Carlos Cortez, Isabel Cristina Pinto Mateus, Mário Lúcio de Sousa, Ana Margarida de Carvalho, José Manuel Vasconcelos, Marinela Freitas, Paulo de Medeiros, João David Pinto-Correia, Teresa Salema (à frente).